Daltônicos anônimos
Boa noite, Alfredo, disse a sala num uníssono e cômodo som.
Era um daqueles prédios pichados até o quinto andar, que te fazem imaginar como os pichadores chegaram até ali. E pior. Pra que tanto esforço prum desenho que ninguém vai entender. tsc. Sei lá.
A sala até que era bonitinha, mas o cheiro de mijo do corredor tornou amarga a resposta. Todos sabiam que ele não gostaria de estar ali. Estava apenas por influência da mulher, que o fizera dormir no sofá por alguns dias. Suas costas doíam mais que a quebra de seu orgulho, e so far away estava sua libido.
Boa noite a todos.
O silêncio foi a consequência mais natural e possível que se pôde ter. Não ligou, muito pelo contrário e tratou de esconder o bucho alcoólico esticando sua camisa cor sim cor não. Talvez aquela ocasião não estivesse muito divertida e nem muito conveniente e nem agradável e.
ntão, Alfredo, há quanto tempo você não vê... aquela cor? Esse pelo visto era o coordenador da reunião e amigo de sua esposa. Alto, forte, bonito. E absolutamente chato. Um já experiente contribuidor da indústria de chifres.
Bom, eu não sei ao certo. Eu não perdi a percepção de uma hora pra outra. Foi algo gradual
Conte mais.
Eu comecei furando alguns sinais no trânsito, não achando produtos no supermercado. Mas o fio da meada foi eu ter perdido meu próprio carro.
Alfredo esperou um pouquinho pra continuar a fim de não parecer tão interessado no papo. Mas aí imaginou que quanto mais rápido dissesse tudo, mais rápido iria embora. Beleza.
Um dia eu o deixei no estacionamento, e aí nunca mais o encontrei. Era um renault logan 2017, com banco de couro e tudo mais. Minha mulher ficou puta. Arriscou uma expressão facial que enaltecesse o duplo sentido dessa última frase, enquanto fitava fixamente o homem.
Sei. E... como era... a pigmentação... do veículo?
Era v...
V de...?
Vingança?
Ver...? Disse com intonação de professora de primário quando espera que o aluno complete a palavra.
Ver o quê?
Ve
ndo que sua estratégia era falha, o homem tratou de voltar ao assunto.
Sua mulher me contou que você tem bebido menos. Isso é verdade?
Sim, não venho tomando muita cerveja. Por alguma razão enjoei de Brahma. Ultimamente só tenho bebido algum whisky antes de me deitar.
Não sabia que você tomava whisky.
Tomo. E adoro. Ontem à noite mesmo, eu coloquei um álbum do Hot Chilli Peppers e matei metade de uma garrafa de Label.
E isso o ajuda a dormir?
Definitivamente não. Sinto como se bebesse um daqueles enérgicos Bull sempre que encaro a cama.
Intrigada com a situação, uma das mulheres que constituíam a roda tentou intervir.
Alfredo, caso corte com uma faca a sua perna. O que irá jorrar?
Um remédio, de preferência.
Não. Da sua perna.
Sangue.
E como ele é?
Ver
dadeiro. Só não o seria se eu fosse um robô, ou um bot.
Ela respirou fundo. A mudança no tom da voz foi perceptível.
Qual. É a cor. De um rubi?
Rubi. Assim como laranjas têm cor laranja.
E da melancia?
Depende. É verde por fora, e se demorar muito a comer, fica madura.
Pouco a pouco, ouviram-se sons de indignação por parte de todos presentes. Aquela atmosfera calma e sem graça se ruiu.
Puta que pariu. Um homem gritou ao fundo.
Alfredo, você gosta de futebol, né?
Uhum. Complementou com um sorriso debochado e uma mexidinha na cabeça. Aquilo estava ficando interessante.
Quais são as cores do Internacional?
Azul e Preto.
PORRA, não o de Milão, mas o de Porto Alegre. A essa altura, os nervos da sala já estavam à flor da pele.
Mas se é de lá, não é internacional, mas sim nacional.
...
Quais as cores do Flamengo?
...
Xeque.
E a roda se paralisou. Veio do fundo da sala a luz para o fim do túnel.
Era o lance da vitória. A cura estava próxima. A pergunta se fez sagrada.
Alfredo pensou um pouco antes de abrir a boca, fazendo com que aqueles poucos segundos demorassem uma eternidade. Enquanto isso, sua doença procurava formas de se manifestar. E ela conseguiu.
Preto.
Silêncio de novo. Algumas eufóricas vozes em coro entoavam preto e o que porra.
Preto e rubi.
E a bola passou por cima do travessão. A luz do fim do túnel descobriu-se infravermelha. A torcida estava prestes a invadir o gramado e meter a porrada nesse filho da puta daltônico do caralho.
Mas não me interessam as cores do Flamengo. É até bom para mim que eu não as saiba identificar. Não me misturo a mulambos.
Qual seu time?
Fluminense.
ESPERA! Mas as cores do Fluminense são verde, branco e v
ai
tomar
no cú, Alfredo interrompeu. E se levantou, caminhando para a saída. Sua face debochada se contorcia em uma mistura de ódio e tristeza
Não é vermelho, é grená. E bateu a porta.
Mais um curado.
Os fótons de fora da caverna nunca são bem recebidos.
Adam Sandler
sensacional. que texto INCRÍVEL!!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito bom mano, adorei a criatividade!!!
ResponderExcluirMuito bom, sério! Incrível.
ResponderExcluirUm texto super divertido desde o título! Acho que você acertou bem na dose de humor e todo o simbolismo com o vermelho. Só no primeiro parágrafo, não sei por qual motivo, me confundi um pouco sem saber se o narrador estava em primeira pessoa ou não. Posso ter trocado uma fala ou outra, mas no geral, consegui discernir muito bem o que era falado, ou descrito. (Mesmo sem marcações visíveis paras as falas). O ritmo do texto é ótimo - um dos motivos pelo qual o humor funciona bem - e a maneira como abordou o tema foi bem criativa também. Parabéns! ;)
ResponderExcluirTexto genial. Vocabulário e estrutura textual muito corretas. A temática foi introduzida de uma maneira muito criativa e muito envolvente. Parabéns!
ResponderExcluirO humor desenvolvido nessa crônica lembra um pouco a pegada de Luis Fernando Verissimo além de trazer uma reflexão sobre a ressignificação da cor vermelha de forma bem divertida.
ResponderExcluirQue texto sensacional, Adam Sandler! Muito criativo, bem construído e igualmente humorado. Parabéns!
ResponderExcluirCARA, esse texto é DEMAIS, sério! Eu tive que ler umas 3 vezes e mesmo assim não entendi direito hahahaha mas quando ele foi explicado eu entendi o quão genial ele é.
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