quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Silvio Santos

A televisão ao fundo tornava menos constrangedora a falta de assunto desse grupo de gente que insistia em se amar. Os bichinhos de luz invadiam a sala e se sentavam nos sofás para prestigiar a reunião, provavelmente mais animados do que os próprios participantes - domingos não costumam ser excitantes, mas eles faziam questão de ratificá-lo. Os parentes revezavam a atenção entre a tela grande, a pequena e os rostos alheios a fim de fingir o mínimo interesse. Apenas Alfredo não ostentava em mãos esse tal de celular, e não coincidentemente era o único empolgado com a ocasião. Quem quer dinheiro?


Uma mulher com pouca roupa - sendo isso destacado pelo apresentador - brotou do auditório para matar a charada. Alfredo coçou a garganta e tratou de salvar a todos do silêncio, afinal familiares precisam conversar:

-Essas jovens de hoje em dia não se dão o respeito.

Curto, rápido, num tom jocoso. Como se assoprasse preconceito em forma de nostalgia. Concordou a sala com acenos de cabeça e caretas despretenciosas, enquanto os aviõezinhos arremessados à plateia se confundiam com os insetos que se chocavam à TV. Esperou alguma resposta mais concreta por alguns segundos, ou alguém emitir algum som relevante, e ameaçou duas vezes voltar ao discurso. Deixou pra lá. Logo após, levantou-se e esticou o pé pra buscar o chinelo que fugia. Num movimento rápido, aplicou um cruzado de direita preciso e potente, digno de grandes boxeadores, direto no queixo da sobrinha do sofá à frente. Sem tempo de entender o que acontecia, a garota desceu ao chão frio pintando o branco de vermelho, e ali permaneceria pelas próximas horas. Ma oe.

Alfredo ajeitou a barriga e se acomodou novamente no sofá, estalando os dedos e a madeira velha. A sala parecia não se importar muito, e Célia, a tia viúva, continuou a direcionar bicos para a câmera de seu smartphone. Edgar, o avô quase cego, tornou a rodar pelo cômodo caçando aquelas trastes voadoras, se esforçando para não sujar suas pantufas novas de sangue novo. Vem pra cá, vem pra cá.

Não demorou muito para que a televisão incitasse mais uma infeliz interação social. A filha do apresentador utilizou-se de seu pouco tempo de destaque para espirrar fonemas. "O homossexualismo não é uma coisa normal". Alfredo pensou em dizer algo, mas notou que seu irmão à esquerda já suava frio sufocado pelo silêncio, já prevendo o que o esperava. E nem seria preciso que levantasse. Um. Dois. Três. Quatro. E o homem caiu num gemido de terror. De aceitação à dor. Roda a roda.

-Merda, Alfredo. Assim não vai sobrar ninguém. Troca esse canal.

Abriu um sorriso amarelo e fechou os olhos para dentro da televisão.
Adam Sandler

5 comentários:

  1. me lembrou a escrita de rubem fonseca. inédito

    ResponderExcluir
  2. incrível!! ótima ambientação, o texto me prendeu e me impactou bastante. muito bem escrito!

    ResponderExcluir
  3. Gostei como utilizou os bordões do Silvio no texto.Parabéns

    ResponderExcluir
  4. As falas de personagens do cotidiano conseguem funcionar de forma fluída fugindo de uma artificialidade capaz de deixar o texto inteiro um clichê. Acredito que isso se dê muito pela sua escolha de como construir o texto, utilizando diversas estratégias como intercalar os diálogos e as ações com os bordões do Silvio Santos que parece mesmo interromper as atitudes dos personagens e ecoar pelo ambiente descrito.

    ResponderExcluir