sexta-feira, 15 de setembro de 2017

O outro




 Há muito já tinha terminado de jantar mas ainda estava sentado na cadeira em frente ao prato. Tintilhava o garfo na superfície da louça e seu corpo não conseguia mais se manter em uma postura aceitável. Estava debruçado apoiado por apenas um cotovelo na antiga mesa de madeira, que já apresentava alguns sinais de desgaste. Seus olhos estavam fixos no telefone, que parecia inofensivo e terrivelmente silencioso no outro lado da sala.
 Durante o jantar solitário tinha devaneado várias vezes. Se imaginava levantando em um ímpeto, segurando o telefone com força, discando o número tão conhecido e falando as três palavras proibidas. Falando não, berrando, implorando, deleitando-se, aliviando-se. Ele fechou os olhos com força, ainda debruçado sobre a mesa deixou o cotovelo escorregar e encostou a testa da superfície fria. Sua exaustão ia além do físico, além do mental. E se ela não atendesse? Se ela estivesse com o outro? E, pior, se ela atendesse e repetisse as palavras daquele bilhete que ele havia encontrado pela manhã e tinha dito tantas vezes para si mesmo que já esperava por aquilo, que estava preparado… Ele sabia que era arriscado, que estava fazendo tudo que jurou que nunca faria, que se ele se olhasse no espelho não se reconheceria, mas, a quanto tempo ele não sabia mais quem era? O espelho não tinha sido um bom amigo ultimamente.
 Soltou o ar que não sabia que prendia com força, abriu os olhos e levantou o corpo da mesa. Os últimos meses tinham sido de um talvez constante, quase enlouquecedor. Ele queria descansar, tomar a única atitude que sabia que lhe traria paz, ou terminaria de afundá-lo na camada mais profunda do inferno. Levantou-se em um ímpeto, segurou o telefone com força, nem precisou pensar enquanto discava, já tinha repassado aqueles dígitos na cabeça vezes demais. Sua mão suava e sua respiração tremia. Um toque. Dois toques. O terceiro toque foi um pouco falhado. Atendeu. Dois segundos de hesitação do outro lado da linha e uma voz masculina disse alô. A voz que ele não queria ouvir. Desligou o telefone quase que no mesmo ímpeto de antes, parecia que o aparelho pegava fogo. Respirou fundo, as lágrimas inevitavelmente viriam. Foi andando em direção ao quarto olhando para o chão. Tudo parecia estranhamente fora do lugar na sua própria casa. Sentou na beira da cama e usando o primeiro lençol que encontrou cobriu o espelho. Não teria coragem de se olhar mais ali.

Perséfone Reis

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