sexta-feira, 20 de abril de 2018

Calar-me-ei jamais

Era uma manhã de sol como outra qualquer aqui em Recife. Após muitos meses chorando por Eduardo, meu ex-noivo, eu resolvi sair da rotina. Levantei a cabeça e fui pegar um ar numa praça. Foi a melhor decisão que tomei nesses últimos meses. O clima estava fresco, as crianças brincavam, os velhinhos alimentavam os pombos, e os pássaros cantavam numa sintonia indescritível. Havia um lindo beija-flor voando pelas flores. O céu estava muito azul e quase sem nuvens. Eu estava totalmente em êxtase por esse singelo momento, até que fui distraída por um grupo, relativamente grande, de homens fortes e, aparentemente, cheios de si, falando sobre um assalto que tinha acontecido ontem naquela praça.

Confesso que, apesar de gostar de ficar sozinha quando estou triste, naquele momento eu estava decidida a sair do meu estado depressivo, causado pela ruptura inesperada do meu antigo relacionamento. Eu precisava, mais do que nunca, conversar. Sobre qualquer coisa. Com qualquer pessoa. Então levantei e fui de encontro àqueles homens. Cheguei meio tímida dizendo:

— Ei, eu estava ali sentada e ouvi sem querer vocês falando sobre um assalto que rolou ontem. Como aconteceu isso?

Com olhares meio assustados, talvez pela minha audácia de chegar para conversar com tantos homens sendo uma mulher, eles me explicaram o acontecimento. Logo depois um dos caras, levantou seu copo de cerveja e disse, em voz alta:

— Se a gente andasse com arma isso não aconteceria! Não vejo a hora das eleições chegarem. Vou votar no Bolsonaro e tudo resolvido. Vamos poder nos defender desses bandidos.

Naquele instante, parte de mim dizia: "Vá embora! Fuja desses loucos". Enquanto outra dizia: "Debata sobre o assunto! Não vai ser tão ruim". Eu, esperançosa, escolhi meu segundo lado e parti para o debate dizendo, com um tom doce e respeitoso:

— Mas você não acha que, liberando o porte de armas no Brasil, país em que o discurso da massa é: "bandido bom é bandido morto", não iria acarretar em um aumento nas taxas de violência? Inúmeras pessoas poderiam fazer "justiça" com as próprias mãos, gerando um caos na sociedade. Além disso, imagine em brigas de trânsito. Quantas pessoas não poderiam morrer por um simples descontrole emocional que nos leva a apertar um gatilho?

Depois disso, olhares de raiva se voltaram contra mim. Eles começaram a falar alto e ao mesmo tempo. Eu não conseguia entender praticamente nada. Apenas ouvi entre uma fala e outra que "bandido tem é que morrer mesmo" e que "não tem direitos humanos pra marginal". Essa última frase chamou muito a minha atenção, afinal, "marginal" não significa só "delinquente" ou "criminoso", como muitos pensam. Significa, também, estar à margem da sociedade.

Depois dessa tentativa falha de debate, desgastada, fui embora para casa. No caminho, percebi que o clima já não estava mais tão fresco. As crianças não estavam mais brincando. Não haviam mais velhinhos alimentando pombos. Os pássaros se calaram. As nuvens não paravam de chegar. O azul do céu se foi, e o cinza tomou conta. Era como se tudo estivesse manifestando luto em respeito à dignidade humana. Então fiz o mesmo. Vesti uma roupa preta e estampei um rosto amargurado, mas não me calei. Fiz um minuto de silêncio, respirei, e fui para as ruas lutar pelo direito à vida. E mesmo que tudo indique que vai dar errado, calar-me-ei jamais.

Por Andrea Melo.

8 comentários:

  1. ESSE CROSS OVER NO COMEÇO MEU AAAA!!!! Andrea mais uma vez indo bem na proposta! um texto desses nem tem o que ser criticado pra mim

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  2. Um texto muito inteligente e bem escrito. O diálogo foi certeiro e ilustrou bem o tema. Achei um ideia brilhante ligar as duas crônicas. Parabéns.
    p.s.: que mesóclise linda socorro

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  3. Achei o seu debate muito bom, e a forma como você associou textos e ideias também. Muito criativo e reflexivo.
    Parabéns!

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  4. Amei você ligar duas crônicas e trazer de volta o "Eduardo" rs
    Gostei mais ainda da sua escrita e pontuação, muito bem escrito e além disso gostei muito do começo, senti um impacto muito grande da primeira estrofe quando tudo estava em aparente paz para o segundo quando os homens chegaram. Parabéns pelo texto!

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