sexta-feira, 20 de abril de 2018

Cuidado: frágil

O quão fácil é viver em uma bolha? Mais aconchegante que um chalé com lareira, ela sempre está ali pra abrigar e proteger: a bolha nunca decepciona. A vizinhança só contribui para esse ar tão confortável já que os outros moradores da bolha sempre estão ali pra abraçar suas ideias e nunca, nunca contrariar.

Só fui perceber que existe sim esse lugar tão cômodo, quando certo dia saí da aula, entrei no ônibus e, como sempre, resolvi colocar o fone de ouvido para ouvir música pelo caminho. Só que, dessa vez, a bateria estava descarregada e logo eu teria que passar o trajeto todo com o silêncio como companhia. Pelo menos, era o que eu pensava.

Curioso que sou, não pude deixar de prestar atenção em uma conversa pelo celular de um homem de cabelos grisalhos sentado três bancos a frente. Uma palavra-chave despertou meu interesse para aquele diálogo que se eu estivesse de fone nunca ouviria: cota. Ele reclamava na ligação sobre ter que pagar a faculdade de seu filho, que por pouco não passou pra federal, e seu motivo para essa problemática era a cota.

Segundo aquele homem, a cota que me deu uma maior perspectiva de futuro, que me ajudou a realizar meu sonho e o da minha mãe de entrar numa universidade era na realidade uma injustiça, porque me dava uma vantagem, apenas pela cor da minha pele e assim restariam menos vagas, para os não-cotistas. A cor da minha pele que, mesmo me orgulhando dela, já foi a razão para eu sofrer inúmeros preconceitos, de repente é vista como uma vantagem? Nunca havia escutado tamanho absurdo, não consegui controlar meu impulso de confrontá-lo.

Me contendo e com muita educação fui sentar ao lado desse senhor e perguntei se ele achava que um jovem de classe média-alta, branco que estudou em escola particular a vida inteira teria as mesmas condições de entrar em uma faculdade federal quanto um outro, só que negro e de escola pública. Assustado com a minha presença e depois com a pergunta, parecia agora relutante para dar sua opinião que antes era tão explícita, completamente diferente do homem revoltado que ouvi na ligação.

Ele acabou respondendo que sim porque através do estudo tudo se iguala, e rindo de nervoso rebati falando que as condições de estudo de um negro pobre é muito inferior, menos oportunidades são oferecidas. Nervoso, o homem disse que havia chegado sua parada no ônibus e foi embora, desceu na famosa bolha. A verdade é que a bolha parece segura mas é muito frágil, apenas uma contradição pode ser o suficiente para estourá-la. E deve.

Por São Valentim.

4 comentários:

  1. MENINO DO CÉU! se eu adorei??? a reflexão aqui não ficou apenas no dialogismo, ela foi além! trouxe o recurso de uma forma natural e não forçada com em outros textos. Parabéns, mais uma semana em que meu texto favorito é o seu :)

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    1. ps: achei que pelo título você ia falar sobre heterossexualidade, porém, foi tapeado hahhahha

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  2. Leitura bastante leve! Atendeu a proposta e ficou realmente muito bom! Eu também achei, pelo título, que você ia falar sobre heterossexualidade, haha. Gostei! Fiquei surpresa! Parabéns!

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  3. Gostei da sua intenção, mas os dois últimos parágrafos do texto parece que fizeram a crônica perder um pouco a força. Pareceu que o personagem fez algo inimaginável na vida real: discutir um assunto tão delicado com um desconhecido na rua. Isso beira o perigo nos dias de hoje, rs. Talvez isso tenha quebrado um pouco minhas expectativas, mas no geral você escreve bem e eu gostei da proposta.

    - Desproporção Sentimental

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