sexta-feira, 6 de abril de 2018

"Na Marselha, colocamos o papo em dia"

Uma das maiores discrepâncias da guerra é o contrate entre atrocidades e momentos sublimes. Eu parei de servir quando bati minha ambulância e quebrei duas pernas, um braço e três costelas. Eu estava na Marselha; especulavam que algum chucrute tinha sabotado a ambulância, mas a verdade é que eu estava bêbado de um pinot noir que confiscamos de um carregamento apreendido. Lutar na guerra tem seus privilégios. Nunca paguei por uma garrafa de bebida durante a guerra.

A verdade é que entrei na guerra com o objetivo de matar o maior número de alemães possível, mas só conseguir dar cabo em dois chucrutes antes de perceberem que eu era uma merda como soldado e me colocarem pra dirigir uma ambulância. Eu era um moleque de 19 anos, ainda tinha espinhas no rosto e sequer tinha carteira de motorista; aprendi a dirigir na marra.

O primeiro dia que passei hospitalizado após o acidente, não fui visitado por ninguém. Sem conseguir mover a maior parte dos meus músculos, tentei inutilmente flertar com uma das enfermeiras, que fez a bondade de me ceder um cigarro. No dia seguinte, o Rosemberg estava de pé ao meu leito quando acordei.

Ele era dez anos a mais do que eu, mas parecia ser vinte. Tinha queixo quadrado e uma barba cerrada. Quando não estava ocupado massacrando chucrutes, mandava cartas para a namorada, que o esperava fielmente no outro continente. Vi uma foto dela uma vez, parecia a Rita Hayworth. Foi o Rosemberg quem, após meu primeiro dia nas trincheiras, percebeu que eu morreria se passasse mais doze horas ali e sugeriu que me mandassem para as ambulâncias. Ele salvou minha vida, e eu era covarde demais para agradecer.

- E aí, garoto. - disse, brincando com uma caixa de fósforos entre os dedos.
Movi alguns músculos do rosto para demostrar que eu estava consciente. Papeamos por um tempo; estavam mandando o Rosemberg para o Japão. Na época, fiquei com inveja dele. O clima da Marselha me fazia mal, meu nariz estava sempre entupido. Desejei-o boa sorte no Japão.

- Daqui a uns três meses a gente se vê. Você ainda vai estar aqui, né?

Inclinei levemente a cabeça, afirmativamente.

- Na Marselha, colocamos o papo em dia. Te vejo por aí, garoto.

Olhei para ele enquanto sua presença deixava o quarto. Ele parecia um galã de cinema. Clark Gable e Humphrey Bogart não eram nada perto do Rosemberg.

Doze dias depois, caiu no meu colo o jornal cólicas notícias sobre Nagasaki.

O Rosemberg e eu nunca colocamos o papo em dia.

É hipocrisia, eu sei. Milhares de pessoas mortas ou afetadas pela bomba e eu só conseguia me preocupar com um soldado que nem era japonês.

Juntei o pouco dinheiro que me restava e gastei tudo em vinho do porto. Saí com uma sacola de papel abarrotada do armazém de bebidas que ficava perto do cais. Sentei-me na beira deste, os pés balançando, enquanto eu abria a primeira garrafa.

Pra variar, era um dia frio na Marselha. Meu nariz estava entupido de novo. Por algum milagre, poucas nuvens estavam no céu, e o sol era visível em sua totalidade. Estiquei minha cabeça em direção a ele, na esperança de receber algum calor. Para isso, era mais efetivo beber o vinho.

Lá pela terceira garrafa, o Sol começou a se por. Passei algum tempo olhando para ele é só consegui pensar em Nagasaki, na iminência da destruição nuclear, no Rosemberg que nunca mais iria voltar.

Joguei a garrafa vazia no mar e prossegui observando o sol se por.

"Ver o por do sol é coisa de desempregado", pensei.

"Talvez o armazém de bebidas esteja contratando".

Por Reed Lou.

6 comentários:

  1. Uau, eu jamais pensei que leria sobre Nagasaki nesse tema da semana, mas UAU.

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  2. Estou muito impactada com seu texto. Amei demais. Criativo, bem escrito e gostoso de ler. Quero mais.

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  3. I'M SHOOK! a unica coisa ruim desse texto é o fato dele acabar. E uma coisa que teria sido INCRÍVEL seria uma comparação com o fogo da bomba e o fogo do céu, demonstrando a devastação que ambos trouxeram ao personagem. (Reed vamos tirar essa história do campo das ideias por favor)

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  4. EU AMEI!! Foi uma crônica muito inteligente. Fugiu totalmente do clichê! parabéns!

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    1. achei inteligente por ter falado sobre Nagasaki em um tema sobre pôr do sol! estou em choque!

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