sexta-feira, 20 de abril de 2018

Mérito para quem?

Segunda-feira. 5 horas da manhã. Minha mãe bate na porta do quarto: “João, acorda! Você vai se atrasar. O café tá pronto. Tá em cima da mesa. Tô indo. Beijo”. Abro os olhos lentamente, não havia dormido quase nada aquela noite, fazendo o trabalho da faculdade. “Anda, João. Levanta. Toma um banho. Bebe seu café. Acorda pra vida, garoto. Você não pode se atrasar no seu primeiro mês no novo emprego”, falei para mim mesmo, tentando me animar.

Moro numa favela na Zona Norte do Rio de Janeiro. Estudo Direito numa Universidade Federal da minha cidade. Comecei semestre passado. Mas como minha família é pobre, também tenho que trabalhar para ajudar em casa e financiar meus gastos com os estudos. Trabalho num escritório no centro da cidade como auxiliar administrativo. Acordo todos os dias às 5, trabalho  até às 4 da tarde, depois vou para a faculdade. Só consigo estudar de madrugada. É cansativo, mas vai valer a pena. Quero ser defensor público para ajudar os meus.

Descendo a favela, paro na banca de jornal: “Jovens de classe média são presos com cerca de 350 quilos de maconha e pistola”, na capa do Extra, “Jovem de classe média é preso em flagrante por tráfico de drogas na Zona Sul”, no Globo. Só rindo. Se fosse na favela, era traficante.

Até que enfim, acabou mais um dia de trabalho. Foi tranquilo, mas cansativo. Corro para a faculdade. No meio da aula de Direito Civil, começa uma discussão sobre meritocracia. A maioria dos meus colegas de turma tem uma situação financeira bem melhor que a minha. Estudaram em escolas particulares, não precisam trabalhar, viajam todo ano.

- “Hoje em dia, tem muitas oportunidades para todos, só não vence na vida quem não quer”.

- “Você faz estágio na empresa do seu pai, Humberto”.

- “E daí? Se meu pai tem uma empresa é porque ele trabalhou muito para conseguir isso. As famílias não vêm do nada. Meu avô era pobre”.

- “Eu concordo com o Humberto, professor. Silvio Santos era quem na fila da vida, galera? E hoje ele tem tudo, tudo que ele conquistou com esforço”.

- “Não é bem assim que funciona, pessoal. A vida não é fácil para todo mundo. O que uns trabalham que nem um fdp pra ter, outros ganham sem nenhum esforço. Por isso, meritocracia é balela. Não vê o João? Para ele, é muito mais difícil se manter na faculdade do que para nós. ”

- “Ele tá aqui, não tá? Tendo a mesma oportunidade que a gente. Isso porque ele se esforçou, enquanto outros não querem nada e vêm com esse papinho. Isso é conversa de quem quer tudo fácil na vida e acha que o mundo lhe deve alguma coisa”.

Eu permaneço calado e com vergonha, mesmo quando citam meu nome. O professor interrompe o debate, quando a discussão começa a sair do controle. “Para a próxima aula, leiam o primeiro capítulo do livro do Foucault”. Eu arrumo minhas coisas, e vou apressado para casa. Quando desço do metrô, ouço barulho de tiroteio vindo da favela onde moro. Pego meu telefone: “Mãe, vou ver se eu durmo na casa de um amigo hoje. Tá perigoso aí, não tá? Fica com Deus. Não chega perto da janela. Amanhã, antes do trabalho, passo aí pra ver como a senhora está”.

Por Kunta Boyd.

5 comentários:

  1. Que pesado esse texto. Adorei a forma como foi escrita, mas senti um pouco de falta da proposta da dialética. De qualquer forma, uma excelente crônica. Parabéns!

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  2. pesado porém real. gostei da inserção de um debate no texto porque foi de forma natural, mas também senti falta da sua opinião sendo mais evidenciada aqui.

    Ps: o ultimo parágrafo deu margem para um outro cenário que não foi bem explorado no final. Poderia ter colocado alguma reflexão acerca da meritocracia e o ambiente no final para fechar o texto o a clichê chave de ouro.

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  3. Pesado, real e certeiro. Me sinto nesse texto, sinto como se você tivesse escrito para mim. Parabéns pelo texto.

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  4. Que texto! Adorei. Seu texto mostra de forma certeira a realidade de muitos. O final deixou com um gostinho de quero mais! Poderia ter colocado uma frase de efeito no fim pra dar um "up" na crônica, mas isso é só uma sugestão. Ficou muito bom desse jeito. Parabéns!

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  5. Surreal de boa. Parabéns enormes... A crítica foi muito bem construída, e dá pra relacionar tanto com pessoas que a gente conhece na vida. Não sei se foram os diálogos, o assunto que realmente me toca ou a forma que você escreve, mas sua crônica me envolveu muito e me deu vontade de ler mais da sua escrita.

    - Desproporção Sentimental

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