quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Uma carta sobre ausência e intensidade

 “Mãe,

Mesmo saindo de você não te conheço. Não sei quem você é e, provavelmente, não sabe

quem eu sou e me tornei.

Depois de tanta luta para me dar o que você nunca teve, eu não tive o que eu mais precisava.

Você. Não tive seu abraço quando eu precisei, não tive seu beijo quando caí. Não te culpo por

nada, mas dói. Machuca mais que cair da bicicleta e arde mais que a água caindo no

machucado.


Eu não fui criada por você, mesmo estando logo ali. Só te via aos finais de semana e talvez

por isso eu odeie domingo até hoje. Eu sabia que você não estaria quando eu acordasse e

muito menos quando eu fosse dormir.


A vida não foi e nunca seria mais fácil com dinheiro e sem você. Mas não tens culpa. Você

fez o que pôde, do jeito que pôde. “No fundo do prato, comida e tristeza”, duas coisas que

nunca me faltaram.


No decorrer da carta, me sinto forte para confirmar que, infelizmente, não te conheço. Queria

muito saber de você. O que te afligia na minha idade, seus amores, suas dores também, mas

estamos tão longe. E olha que você está no cômodo ao lado.


Queria confiar em você meus segredos, meus medos, minhas dores. E não é que não lhe ame,

ou não confie em você. Você é sim minha amiga, e me chateio por ser só isso. Talvez por isso

a gente se olhe, se toque e se cale, e se desentenda, no instante em que fala. É difícil falar

com quem não me conhece.


Mas nem Deus sabe o quanto eu te amo e o quanto eu sinto falta de um vínculo maior

contigo. Deus sabe o quanto eu sou grata por tudo o que fez e faz por mim. Ter saído de um

lar abusivo por mim, ter se doado de longe pra mim. E se Deus é uma mulher, tem sua

história.


Me dizem que sou sua voz, sou sua personalidade, seu gosto musical, seu corpo, sua

inteligência. Dizem que me tornei Sua semelhança, não posso confirmar. Mas eu sei que me

tornei tudo aquilo que queria que eu fosse. Sou quem você se orgulha e ama na mesma

intensidade.


Talvez seja você, mas sei quem sou. Sei por quem sou. Sei que te amo.”


Depois de ler essa carta deixada dentro do fichário, eu penso que seria interessante viver

intensamente com quem amamos. E que é tempo para isso, enquanto há tempo para isso.

”Senão chega a morte ou coisa parecida, e nos arrasta moço sem ter visto a vida.”


                                                                        Michael Scarn

13 comentários:

  1. Gostei da referência ao Belchior. Essas relações familiares que crescem frias parece tão difícil de mudar. Eu queria poder, espero um dia conseguir!

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  2. Foi um texto muito bem construido e que me fez assistir de longe essa relação, parabéns por isso. Sinto muito pelo que passa, espero que consiga fazer dessa situação algo que te fortaleça.

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  3. Gostei muito do formato da carta. Conseguiu me envolver do início ao fim. Sinto muito por essa situação, torço para que melhore.

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  4. Amei seu texto. Amei as metáforas e referências e acho que conseguiu expor seus sentimentos de forma clara e bela. Uma pena ter ficado por último aqui no blog, não sei se todo mundo leu até aqui. Mas parabéns!!! Me identifiquei com suas palavras, texto muito forte e significativo.

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  5. Um dos meus textos preferidos até agora! A segunda metade me envolveu de uma forma linda, meus olhos encheram de água. A admiração que você tem por ela e ainda assim a falta que ela te faz mesmo tão perto é perceptível em cada linha.

    "E se Deus é uma Mulher, tem sua história" vou guardar essa frase com muito carinho. Obrigada pela coragem de expor seus sentimentos!

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  6. Da esse texto para sua mãe ler. É lindo e com certeza fará diferença na relação de vocês.
    Fiquei confusa quanto a algumas aspas, tirando isso escrita ótima!

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    1. Oi, Nakia. As aspas são trechos que tirei da música do Belchior. Só pra não parecer que são minhas palavras. Obrigada pela crítica.

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  7. Texto muito bonito, me envolvi bastante e gostei do formato. Sinto muito por você passar por isso, espero que fique bem!!

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  8. O texto tá lindo, muito bem construído e passa uma mensagem forte e clara. Parabéns!

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  9. Gostei do seu texto, Michael, escrito de maneira que me parece bem sincera, no formato de carta. Sua crônica me fez pensar sobre as distâncias que não são físicas, mas são tão presentes como se fossem.

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  10. Ótimo texto, a escrita é bem sincera e profunda, você conseguiu transmitir de forma bem clara os seus sentimentos. Espero que um dia essa distância entre vocês diminua, te desejo muita força!

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  11. Você escreveu de uma maneira que me fez sentir toda essa dor e angustia. Parabéns pela ótima escrita, mas principalmente por esse talento de passar toda a sua dor para o "papel".

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  12. Mensagem fortíssima, me fez pensar muito sobre a minha relação com a minha figura materna também. Espero que um dia essa distância amenize e que você consiga ser sempre tão forte como foi nesse texto.

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