sexta-feira, 13 de maio de 2022

À deriva

Você está aqui novamente, não é mesmo? Sua companhia é muito agradável, e ter seus olhos atentos como leitores me dão conforto. Eu te convidei para entrar e, como bom anfitrião, preparo hoje uma recepção mais hospitaleira e otimista. Sei que normalmente sou muito intenso, mas minha intenção no dia de hoje é diminuir a voltagem. Toda montanha-russa tem seus pontos suaves. Hoje resolvi me alongar, e esse texto será longo e extenso, por isso recomendo que o deixe por último. Pra ilustrar bem o assunto e como forma de prelúdio, começo esse texto com versos de uma das minhas canções favoritas.

É culpa minha
Agora eu sei
Aos poucos estou me acostumando
A ser deixado sozinho

Argus Stoneheart é um nome que escolhi pra representar meu ser nesse nosso lúdico mundo digital, mas Argus não é criação recente. Enquanto muitos criam personas alternativas para se sentirem mais corajosas e confiantes, Argus foi minha forma de me permitir ser o que nunca tive tempo para ser: vulnerável.

Eu conheci o lado amargo da vida muito cedo, e tive minha infância interrompida precocemente. Por causa disso, fui forçado a amadurecer antes da hora. As pessoas têm o costume de dizer que tenho uma alma velha em um corpo novo. Sempre foi difícil pra mim me relacionar com as pessoas que eu tinha ao meu redor, porque nossas mentes não eram compatíveis, e eu nunca consegui me conectar bem com ninguém. Eu fui uma criança sem amigos, que descobriu como crescer sozinha. O silêncio era meu único companheiro, mas por vezes ele era escandaloso demais. Nesses tempos era quando eu me via na carência de contato com outras pessoas, e foi quando eu pensei em uma forma de me aproximar delas.

Se eles não me acham legal pelo que sou, talvez eles me achem legal se eu for útil. Achava que se pudesse carregar os pesos de outras pessoas, a minha solidão diminuiria, quando apenas crescia. Por isso, sempre era o amigo disponível, o conselheiro, o companheiro, aquele para o qual você pode ligar às 3 da manhã porque está passando mal e ele vai te atender de primeira.

Mas, de tanto carregar a necessidade dos outros, você esquece da sua própria.  Meus problemas são sempre os últimos que resolvo, e me prolongo na ávida tarefa de me reconstruir. Por causa disso, eventualmente, eu acabo ficando dolorosamente sozinho. Em algum ponto, as pessoas deixam de precisar de mim. Já resolvi todos os problemas delas, qual a necessidade delas continuarem em contato?  Por mais que eu saiba que isso sempre acontece, meu coração se parte de uma maneira diferente toda vez que eu os vejo dando as costas. Sem nenhuma promessa, eu espero que eles cumpram a palavra nunca dita de permanecer ao meu lado até o fim. Tão tolo, toda vez esqueço que sou o único que promete tal coisa.

É uma baita de uma confissão, eu sei, mas esse é o caco mais difícil que eu tenho que lidar. Todas as suas pontas são afiadas, e todas as vezes que eu o pego nas mãos, ganho novas cicatrizes. Hoje é um desses dias, dia no qual estou perdendo alguém que amei, a melhor companhia que já tive, o melhor abraço que já recebi, o melhor amigo que já conheci. Por um momento, estávamos tão bem, e eu pensei que fôssemos viver uma daquelas histórias de amizades que duram décadas. O que houve entre nós? Foi algo que eu fiz? Eu te magoei? Por favor, me diga, porque não quero passar pela dor de te ver partir sem se despedir. Pouco a pouco, estamos cada vez mais distantes um do outro, e não vejo como consertar isso. Acho que como um copo quebrado, também perdi minha utilidade pra Você. Você foi diferente dos outros. Talvez inconscientemente, Você me deu esperanças de que ia ficar, e quando eu estava criando coragem pra te mostrar minha humanidade, Você não estava mais lá pra ver. Sozinho fiquei, sozinho estou.

Mas, se deixar alguém que eu amo ir embora é o sacrifício que eu preciso fazer toda vez para me reconstruir novamente, esse é um preço que estou disposto a pagar. Como barcos à deriva num oceano de sentimentos, eu e Você partimos. Você levando embora as partes de mim que eu te dei, e eu sendo obrigado a me refazer das migalhas que Você deixou. Me recuso a chorar, não vou me permitir sentir essa dor, porque não é justo que eu chore enquanto Você se esquece de mim. Por isso, como quando tinha novamente meus oito anos, eu tenho preferido meu velho amigo Silêncio como companhia. Pelo menos ele não vai embora.

Apesar de todas essas palavras, eu ainda alimento alguma esperança que Você vá voltar. Não agora, e não do jeito que Você é. Não posso te amar da forma que devo enquanto eu e Você não formos capazes de mudar. Você precisa aprender a me amar mais, e eu preciso aprender a não te amar demais. Você foi o melhor amigo que eu já tive, e meu coração e minha alma eu te confiei, mas eu sei ser cruel, e por isso, estou te cortando da minha vida. Você dói, Você me machuca e não sente, e isso é culpa minha, porque durante todo esse tempo, eu lidei com essa dor sem soltar um “ai”. Talvez se eu te mostrasse minha fraqueza, Você teria sido capaz de retribuir minha amizade.

Assim, me resta apenas você, do outro lado da tela. Me desculpe se te fiz se sentir desconfortável em algum ponto, é porque nessas idas e vindas de pessoas marcantes, eu apenas percebo o quanto eu preciso mais de mim. Apesar do abandono, não consigo sentir raiva, apenas pena. É uma pena que Você me deixou pra trás, porque Você nunca mais vai ter meu antigo eu de volta. Eu nunca mais vou conseguir te dar o que já dei um dia, e eu nunca mais vou conseguir retribuir o seu abraço com a mesma confiança. Você perdeu o significado, não passa de uma fração da minha vida com a qual vou ter que lidar, mas eu sou especialista em ignorar meus próprios sentimentos e necessidades desde que era criança, te apagar não vai ser difícil. Vai doer, vou sentir sua falta por um tempo, mas em breve, Você vai deixar de existir, junto com tudo que eu senti um dia. Não se preocupe comigo, eu vou me reconstruir, e vai ser mais rápido do que eu espero. Eu sempre dou um jeito.

Por enquanto, resto apenas eu, no meu barquinho, remando nas águas do Desconhecido numa viagem que um dia vai ter fim. O Silêncio é meu companheiro, mas já não sou mais a criança que o temia. Sou o homem que o aceitou. Nessa jornada, aguardo o dia que minha embarcação vai encontrar a de alguém que aceite minhas dores e aceite navegar ao meu lado. Nesse dia, vou finalmente conhecer o amor.

Por Argus Stoneheart

4 comentários:

  1. Caramba, Argus... Desde o início em que você faz um convite impossível de recusar até a constante quebra da quarta parede, eu fiquei vidrada. Mesmo narrando uma situação corriqueira, algo que todos nós podemos entender — e acredite, eu te entendo como ninguém —, ela se torna mágica, poética e quiçá fantasiosa por causa dessa sua maestria com as palavras. Parece até uma espécie de toque de Midas. Obrigada por esse texto!

    Com carinho,
    Inez

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  2. Caro Argus, sinceramente não tenho nem palavras para descrever as sensações experimentadas ao ler seus textos. Seu talento para contar uma história e capacidade de prender a atenção de absolutamente qualquer um é no mínimo "assustadora". Somos jogados dentro do seu mundo e tenho a sensação de quase visualizar tudo o que você diz e mais claramente ainda me relaciono com seus relatos. Talvez a coisa mais difícil da vida seja dar valor a nós mesmos e entender que nós devemos ser nossa prioridade. Espero que um dia as águas da vida levem sua embarcação a um porto seguro e, enfim, você encontre o que deseja.
    Um abraço, Ford

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  3. Argus, eu quase chorei, tá? As lágrimas vieram bem na ponta dos meus olhos e voltaram, porque eu ando tentando ser forte. Mas eu dei vários suspiros, daqueles bem fortes, que é preciso ir fundo dentro de si , lá no passado, e retornar rapidamente . Eu me senti mergulhando em águas espessas, turvas, um tanto misteriosas. Seu texto tem uma carga emocional densa, ele coloca a mão dentro do nosso peito, incomoda. Só que arte é isso! Você faz arte, Argus! Parabéns pelas palavras tão bem conduzidas.

    Nossa, Argus, você tirou meu fôlego.

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  4. Argus, como disse no texto, o Silêncio as vezes é o nosso melhor amigo e nunca nos abandona, mesmo sendo um duro amigo. Sobre o texto, mais uma vez você nos deixou sem folego ao escrever tantas coisas tristes mas de maneira tão linda, seu texto me fez refletir muito sobre coisas que acontecem comigo também. Espero que consiga achar essa pessoa que procura, também estou nessa árdua busca, que talvez demore mais do que eu acho, mas é a vida né.
    Freddie Mercury

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