sexta-feira, 13 de maio de 2022

Duas viagens


Um dia, resolvi procurar todas as minhas tristezas e juntá-las numa sacola.


A sacola é vermelha por fora, decorada com pedaços de corda crua. Me ensinaram que vermelho é a cor da paixão, então eu imagino que, para essa tarefa, eu tenha escolhido a cor errada. Não sinto paixão por nada que está dentro dela. A corda crua faz mais sentido; a cor neutra me lembra apatia, e é isso que me corrói por dentro nesse momento. Já não sinto mais as batidas do meu coração nas pontas dos dedos.


Não consigo identificar quais tristezas eu escolhi. Acredito não ter conseguido pegar todas, é claro, até porque contabilizar esse número seria uma tarefa hercúlea. Fui avassalada por mais tristezas do que consigo contar nas duas mãos, mas preciso apanhar pelo menos uma parte delas. Talvez aquelas mais pungentes, as que atravessam meu peito e fazem morada no meu interior, fiquem de fora dessa vez. Mexer nelas requer um cuidado especial, um time de cirurgiões com qualificações destemidas, e eu não quero correr o risco de girar um punhal da forma errada. A coleção que se abriga dentro da sacola vermelha, portanto, é das tristezas que cabem na palma da mão, que se transformam em pequenos seres de cor roxa que pousam no meu ombro e sussurram palavras em latim em meu ouvido — eu não sei falar latim.


Eu carrego as tristezas até o precipício. Nietzsche disse algo sobre abismos (eu tenho medo de altura e odeio o niilismo) e me sinto inclinada a concordar com ele: quando abro a sacola vermelha e despejo as minhas tristezas precipício abaixo, elas parecem estar mais comigo do que nunca. Elas parecem um espelho, revelando todas as faces da pessoa que eu decidi esconder por todo esse tempo. Algumas dessas tristezas têm som, imagem e cheiro, então elas perduram pelo caminho, se agarrando às paredes das rochas, até se estilhaçarem no chão. Eu ainda consigo sentir algumas dessas tristezas, mas vai ficar tudo bem. Elas já foram embora.


Na volta para a casa, a sacola vermelha se transformou em amarela e as decorações de corda crua se transformaram em bordados de linha dourada. Me ensinaram que amarelo é a cor da alegria, então eu imagino que, para essa tarefa, ela seja apropriada. Afinal, não é a alegria o antônimo da tristeza? Não é o sorriso aquilo que combate uma lágrima? Os bordados em linha dourada não fazem tanto sentido; dourado é raridade, e eu sou igual a todo o restante. Minhas tristezas são bem parecidas com as de outro alguém.


Ralei meu pé na rua. A sorveteria estava sem meu sabor predileto. Minha nota não foi suficiente para um certo processo. Meus pais brigaram. Não foram à minha festa de aniversário. Meu filme favorito saiu do catálogo da plataforma de streaming. Comentaram sobre minha aparência. Minha unha quebrou.


Um dia, resolvi procurar todas as minhas tristezas e juntá-las numa sacola.


De tempos em tempos, eu preciso fazer essa faxina e reencontrar a sacola vermelha decorada com pedaços de corda crua. Ela já se parece com uma velha amiga, amável o suficiente para me perguntar, “Está doendo de novo?” quando toco em suas alças. Com um aceno de cabeça, eu digo que sim, e ela me leva até o precipício, segurando grande parte do peso que eu carrego. De tempos em tempos, a sacola vermelha indaga, “Mas e as melancolias? O que você vai fazer com elas?”, e eu não consigo explicar que tenho medo de mexer nas melancolias sozinha e que uma sacola não é exatamente a companhia que eu preciso.


Recomponho-me dessa forma; lembrando que próclises não iniciam períodos, que corais são cnidários, que Nietzsche não era niilista e que unhas crescem novamente. É um processo demorado, chato, tedioso, mas que, a partir de conhecimentos que eu já tenho e fatos que me agradam, me faz sentir inteira novamente. Eu me sinto abraçada pelo conhecido; ele não me estilhaça. As melancolias, de certa forma, já viraram conhecidas.


Mas as melancolias são feitas de tristezas e, um dia, resolvi procurar todas as minhas tristezas e juntá-las numa sacola.

Por Inez Quadros

Um comentário:

  1. Durante a leitura, consegui sentir na pele o peso das pequenas tristezas e a liberdade que representa atirá-las no abismo, entulhadas numa sacola. Você soube dar as mãos ao leitor e guiá-lo pela situação descrita de uma maneira que beira a sinestesia. Sensacional, Inez!

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