Um pássaro com asas de cera
A sensação de voar é uma das
coisas mais libertadoras que um ser humano é capaz de sentir. O vento batendo
no rosto, ver a diminuta terra carregada de diminutas pessoas... Você se sente
o dono do mundo.
Porém, para quem já despencou
dessas alturas repetidas vezes, a ideia de voar novamente chega a ser
apavorante. Se, por um lado, ser envolvido pelo abraço do vento e carregado
pela brisa é uma das melhores coisas, ser abandonado por esses braços em pleno
ar e sentir seu corpo cair em queda livre a quilômetros de altura é
desesperador. A sensação de abandono, de solidão. Os segundos que antecedem a
queda são onde você está mais alto na atmosfera. E, num instante, quando você
finalmente está tão perto do céu, parece que o Sol se enciúma da sua tentativa
de roubar seu prestígio.
Como Ícaro, no ponto mais sublime
da trajetória, suas asas de cera são incineradas por um Astro invejoso. As asas
que demoraram anos pra serem montadas, asas que você construiu para fugir da
sua cruel, excruciante e fria realidade são destruídas, juntamente com seus
sonhos.
Não culpo o Sol, no entanto. A
ambição foi minha, e nossa, de esquecer
que o nosso objetivo nunca foi voar alto, apenas voar pra longe. E nós
conseguimos, nós gradativamente alçamos voo, mas deixamos de lado a consciência
de que precisamos fugir o mais rápido pra longe do nosso labirinto, pra longe
do nosso passado, para longe do espelho. É que o Sol é tão lindo, tão
reluzente, que somos atraídos inconscientemente para ele. Se soubéssemos a dor
de cair, nunca almejaríamos as maiores alturas. Como mariposas, somos atraídos
para uma luz, sem perceber que ela não passa disso. Mesmo quando estávamos em
solo firme, o Sol já brilhava, é a vontade e a possibilidade de tocá-lo,
produzida por nós mesmos, que nos derruba. Se seguíssemos uma trajetória
regular em direção ao horizonte dos nossos objetivos, talvez os sentimentos inalcançáveis
não fossem capazes de derreter nossas asas de cera.
Agora, estou calejado demais para
voar de novo. Minhas asas não suportariam meu peso, e meu coração não
aguentaria cair novamente. Por isso, me ergui do fundo do mar como uma âncora
sendo puxada por um navio que cansou de permanecer no mesmo lugar. Não vou
afundar como Ícaro, não vou ser tragado pelas profundezas. Não vou deixar os
sonhos que construí com lágrimas, luto, suor e sangue serem presos pela
escuridão de um coração que parou de bater. Nem que eu me erga dos mortos, eu
vou chegar no meu destino final. Vou conquistar tudo que sempre quis, e dessa
vez, o Sol, a Terra e o Mar serão as testemunhas da minha vitória, porque eu
não vou ser mais um obstáculo no meu próprio caminho. A ambição jamais vai me
cegar novamente, porque a memória da dor é vívida demais.
Nunca mais saberei a sensação de
voar novamente, de sentir minhas asas cortando o céu, porque quando eu
finalmente vencer, são as próprias nuvens que vão descer até mim para me
carregarem. Naquele dia, vou olhar pra trás, e as distantes memórias de um
pássaro com asas de cera vão ser de qualquer um, menos minhas.
Por Argus Stoneheart
Argus, os seus textos sempre me deixam sem fôlego, inebriada, em êxtase, pois é extremamente agradável poder imergir em um texto rico de palavras, analogias e metáforas. Inicialmente, o meu texto seguiria uma linha próxima a sua, sempre é muito estranho como temos sentimentos tão semelhantes. Amei, de longe, o seu melhor texto até o momento, aguardo ansiosamente pelo próximo.
ResponderExcluirCom carinho,
Lilith
Impressionante o quão bem você conseguiu expressar seus sentimentos, Argus. Me fez mergulhar profundamente dentro do seu texto e entender um pouco da sua situação. Sei que não é fácil, mas, como você mesmo disse, um dia tudo vai melhorar e todos nós voaremos muito alto.
ResponderExcluirArgus, adorei as metáforas! A construção do texto foi muito bem feita.
ResponderExcluirArgus, é impressionante como você consegue escolher tão bem suas palavras, seu texto é muito bem construído e estruturado, meus sinceros parabéns!
ResponderExcluirArgus, seus textos estão entre os meus preferidos! Você escreve muito bem, com riqueza vocabular, uso de metáforas e recursos descritivos. Consigo me conectar com você pela leitura, assim como me enxergo nas cenas descritas. Parabéns!
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