sexta-feira, 6 de maio de 2022

 FOI UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA

 

A água escorrendo pelo chão do box, a pressão que o jato do chuveiro realizava em suas costas e o chiado que remetia a uma nascente qualquer, davam fundo a uma cena um tanto quanto perigosa. Ela olhou o reflexo no azulejo do banheiro e se deparou com olhos inchados, expressão cansada e um gosto de fel na boca. Ao pegar o sabão, procurava esfregar a pele na intenção que o mesmo -que não era responsável por nada-, fosse capaz de levar as impurezas de sua personalidade nociva para longe, como sabia que levaria a sujeira de seu corpo pelo chão em direção ao ralo.

Ela esmiuçou a palma das mãos, tão pequenas, cheias de linhas desenhadas naturalmente e que contrastavam com as linhas em seu pulso, características que lhe deixavam com aparência frágil. Um, dois, três cortes, ardência provocando-lhe arrepios no corpo, sangue pelo chão e lágrimas silenciosas, duras tomando a face. Não sabia dizer o porquê fazia isso consigo, ora pensava que fora apenas uma punição isolada, ora fazia acordos silenciosos consigo, -como quem acordava coisas com o diabo- de que estava se ferindo para evitar medidas drásticas.

Havia um pouco de prostração, pois implorava aos deuses que lhe escutassem, que lhe ajudassem a refrear seus impulsos, que fosse capaz de dominar-se. Era uma mania cotidiana delegar funções e obrigações, fosse aos objetos inanimados ou pessoas, ela acreditava cegamente ser vítima e neste papel de vítima, punia a si e aos outros. Era a dita cuja autossabotagem. E ela vinha de todos os lugares, algumas palavras impulsivas proferidas e as pessoas tomavam distância. Os amigos iam sumindo, pouco a pouco, o telefone -antes muito agitado- não vibrava com mensagens e os namorados eram encaminhados para a lista de bloqueios.

Lilith observava a fluência de sua vida, onde as pessoas passavam rapidamente sem deixar nada, não por que estas eram vazias e sim por sua toxicidade. Poluição. Não existia confluência, ninguém se atrelava a ela em direção a um mesmo ponto. Não tinha afluência para desaguar em lugar algum. Era um rio morto, sem vida. Certo dia, enquanto voltava para casa após trabalho, bem acomodada em seu assento no ônibus, ouvira um comentário, vindo de uma mulher que conversava ao telefone: - “não sei porque faço coisas assim comigo, se eu sei que esse cara não me trata bem, não tem por que eu ficar lá implorando uma migalha de atenção, eu só tomo decisões erradas, é como me torturar”.

Estalo. Um alarme soara em sua cabeça enquanto assistia as pessoas atravessando o sinal vermelho no trânsito, ela compreendeu. Estava se torturando. Aniquilava relações, porque tinha receio de construções sólidas, acostumara-se a estar sozinha e, apavorada quando se via envolta de outras pessoas, seguia exterminando tudo que encontrava no caminho, até quase exterminar a si mesma. Contemplou o próprio reflexo no vidro do ônibus, enquanto acariciava seu pulso e compadecida por uma fala isolada de uma estranha, decidiu que faria diferente naquele dia. Ao adentrar o quarto, em casa, procurou o celular em sua bolsa, alguns dígitos depois, uma frase exprimida: – “oi, tenho muita vergonha de dizer, mas eu quero ajuda, você pode me ajudar? Não tenho como viver assim.” A luz da lua adentrava o quarto pela janela, acompanhada por uma brisa suave. Ela aspirou o ar vindo de fora, contemplando a dama reluzente da noite, em seu coração surgia a esperança de que estes ventos anunciassem a mudança em sua vida. 

Por Lilith Lili

5 comentários:

  1. Lilith, gostei muito da forma como escolheu escrever seu texto: em terceira pessoa, como se você precisasse se distanciar de si mesma para realizar essa autoanálise. Talvez seja por isso que tenha chegado à decisão de pedir ajuda para quebrar esse ciclo de destruição. Foi uma boa leitura para mim, parabéns!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Querida Lilith, você conseguiu expressar muito bem esse sentimento de mudança, as escolhas das palavras foram impecáveis. Parabéns pelo texto!

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  4. Lilith, você tem uma escrita linda e sensível. O leitor se sente tocado e também se identifica com as suas palavras. Fiquei feliz por saber que você pediu ajuda para interromper esse ciclo. A mudança é um processo, espero que você encontre coisas boas pelo caminho. Obrigada por compartilhar sua dor conosco.

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  5. Lilith, seus textos me causam certo desconforto e sei bem o motivo. Parece que, às vezes, eu estou me lendo em realidade paralela, mergulhando demais nas ações e sentimentos expostos. E sabe por que isso acontece? Porque você narra e descreve com uma habilidade impressionante. Claro que eu também me identifico em algumas situações, mas acredite quando falo que você cumpre a sua função de passar a emoção que está sentindo. Meus ombros gelam, meu coração aperta, minha garganta seca. E, ao final da minha leitura, uma ponta de alívio perpassou o meu corpo, pois você conseguiu encontrar a esperança e se agarrou a ela. Muito obrigado pelo seu texto, você é todo um oceano de força para mim.

    Abraço apertado do Liev.

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