Eu gosto de sentir o gosto de palavras.
'Felicidade' tem gosto de menta. 'Surpresa' tem gosto de pasta de amendoim com avelã. 'Casa' tem gosto da linha que passa pela minha língua quando eu ajudo minha avó a costurar. 'Paixão' tem gosto de limão e álcool. 'Shakespeare' tem gosto de bolo de banana com gotas de chocolate meio-amargo. 'Auto', o 'eu', tem gosto amargo de uma bala que ficou no fundo da mochila, amassada pelo peso dos cadernos.
O melhor gosto de todos, entretanto, eu ainda não senti — permissão. A acidez de 'novidade' não é tão ruim assim nas minhas papilas gustativas e eu já me acostumei ao doce sabor de 'euforia', mas a permissão ainda não atravessou a minha garganta. Acredite quando digo que eu já tentei experimentá-la várias vezes, chegando até a procurar esse gosto em receitas de terceira mão, em livros de culinária perdidos na gaveta da sala, e não o encontrei nem em lugares desconhecidos.
Toda vez que a permissão bate na porta do meu esôfago, eu desenvolvo uma alergia. É natural e já virou rotina: o nariz passa a coçar, as bochechas ficam vermelhas, os espirros saem a quilômetros por hora e os olhos pesam como se eu estivesse com sono. Os neurotransmissores responsáveis pelo prazer — esse tem gosto de canela e café queimado, com a medida certa de açúcar — cortam as conexões com o cérebro, desistindo de trabalhar. Eu nunca cheguei sequer perto da permissão.
— Mas, Inez — indaga o homem sentado à minha frente, pernas cruzadas elegantemente, a mão posicionada em volta de um copo gelado de cerveja do qual ele toma um gole antes de continuar: —, você não precisa se permitir para sentir o gosto de todas as outras palavras?
Fecho minha jaqueta e aperto meu próprio corpo. Estaria ele certo? Será que todos os gostos que eu senti, todo o cardápio que eu preparei ao longo desses anos, foram imitações baratas? Seria essa a minha sina, estar fadada a essa pseudo-sinestesia que me enviava informações falsas? Eu nunca me permiti. Nunca me permiti à diversão, à felicidade, a estar em casa, a me embebedar de paixão, a gostar de Shakespeare, a gostar de mim.
Desejo estar dividindo um refrigerante nesse momento. Dessa forma, eu não seria obrigada a sentir sozinha o orgulho descendo garganta abaixo, se alojando discretamente na boca do estômago, o reconhecimento de que eu estava errada se apoderando do meu corpo. 'Errar' tem gosto de bile. Eu odeio errar. Mas ao acreditar demais nas minhas próprias anotações, ao entender como escritura sagrada minhas experiências únicas, eu errei.
A permissão deveria ser o primeiro gosto que eu sinto. Não somente isso, mas eu também deveria buscar o gosto dela em todos os outros sabores. Acredito que ela não seja forte como o prazer e nem agridoce como o gostar… Deve ser um subtom, um toque de coentro e manjericão, uma combinação de ardores que não estraga a experiência primária mas não passa despercebida. A permissão, a única coisa que eu não me permiti sentir — que seja celebrada a ironia —, está escondida.
Preciso encontrá-la.
No final daquela noite, não senti sabor algum no beijo dele. Passou em branco, mutando os sons que vinham da rua ocupada e das cadeiras do bar, deixando somente as batidas estáveis daquilo guardado em meu peito e a eletricidade nas pontas dos dedos. Lá nas entrelinhas, porém, senti uma canela suave, cevada amarga e, no fundo, bem no fundo, o coentro e manjericão. Não irei me apressar e assumir coisas que não existem, mas posso dizer que a permissão vem aos poucos. Dessa vez, não vou anotar nada no papel. Certos sabores não são fáceis de refazer.
Por Inez Quadros
Muito bom, Inez! Me ganhou desde o início com essa sinestesia construída magistralmente. Parabéns!!
ResponderExcluirInez, esse texto me atravessou tão profundamente que eu não tenho um comentário à altura do que ele merece. Sua escrita é bonita e de fácil identificação, você faz com que o leitor se sinta parte do texto com você. Isso é lindo.
ResponderExcluirInez, o seu texto me encantou logo nas primeiras linhas! Fui totalmente envolvida durante a leitura. Como comentou o Akil anteriormente, a construção das sinestesias foi perfeita. Parabéns pelo excelente texto!
ResponderExcluirInez, querida, que texto lindo. O primeiro paragrafo já me encantou e me fez termina-lo ferozmente, obrigada. Beijos, Manu.
ResponderExcluirQuerida Inez, não tenho nada a dizer além de parabéns! A forma como você construiu o texto foi impecável, de uma forma em que eu me senti até seduzido por ele.
ResponderExcluirQuerida Inez, a sinestesia de seu texto é como mágica. É impressionante a maneira como suas palavras me prenderam aqui e me fizeram sentir ou no mínimo visualizar tudo o que foi descrito. Suas descrições são palpáveis, seus sentimentos tão brilhantes que iluminaram meu coração. Parabéns pelo texto, você é fenomenal!
ResponderExcluirCom carinho, Ford.