sexta-feira, 13 de maio de 2022

A melhor tentativa, uns erros e algo a mais

O que somos? Do que somos feitos? Ou melhor, de quem somos feitos? De quando somos feitos? Eu sou uma amálgama de tudo que já me aconteceu, de tudo que já vi e vivi. Sou feito de todas as pessoas com quem já me relacionei, me apaixonei e traí. Sou o tempo que deixei pra trás, as mudanças que realizei, sou o que ainda nem sei se farei, como farei ou porque farei. Eu sou tudo aquilo que não vale nada. Sou tudo aquilo que tem de melhor das nuances da vida e do que já absorvi, sabendo que é bom, querendo o que é bom. Sou pensamentos ruins, momentos que me fizeram mal, pessoas que me fizeram mal. Eu sou o sofrimento e a angústia desses momentos. Sou o choro sem motivo, o desespero que bate na porta, sou a tristeza irracional, a falta de sentimento, a vontade de sentir algo nem que seja dor, nem que seja ruim, nem que seja um horror. Eu sou o cansaço, a frustração, a derrota. Você já se sentiu cansado? Cansado não... acabado, destruído, moído, esgotado... fragmentado. Fragmentado, dadas às circunstâncias, dado o peso de se viver em sociedade, dado o peso das obrigações, dado o peso das relações, dado que não sou eu quem joga os dados.

Todos somos uma grande mistura de tudo o que já passou e vai passar por nós. Nós somos o sol que pegamos numa manhã de domingo. Somos a alegria de reencontrar um amigo. Somos o fervor de uma primeira paixão. Somos a alegria de finalmente se sentir amado e amar. Somos o êxtase da comemoração. A embriaguez alegre de um sábado à noite. Somos a alegria de finalmente se sentir pertencente a um lugar, um grupo, uma tribo. Somos o amor de nossas mães, o carinho a ternura e o cuidado. Somos a saudade que sabemos que sentiremos quando esses momentos não puderem mais ser vivenciados. Somos os olhos marejados, o coração palpitante, cambaleante, de um momento emocionante.

Eu quero lembrar pra sempre de você, quero te ter pra sempre comigo. Não quero sentir, nem mesmo saber que você vai embora. Não quero que isso faça parte de mim, mesmo sabendo que vai fazer. Não quero chorar pensando na sua partida, pelo contrário! Quero lembrar pra sempre da sua presença, da sua companhia, do que me fez sentir, como me fez rir e até me fez sofrer. Eu quero agradecer pra sempre o que você me fez ser. Quero ser pra sempre o que você me ajudou a ser.

E sendo tudo isso, como é possível viver? Simples, não é. Nós não vivemos. Morremos todos os dias, nos desfazemos, nos destruímos ou somos destruídos. Nossas células se renovam, nossa pele se renova, nosso cabelo cai e renasce, e assim funciona também com nossa alma. O mundo, ou até nós mesmos, destroem cada pequeno pedaço do que já fomos e o que somos a cada fim de dia, a cada fim de ciclo. Eu sou um milhão de coisas, mas a cada fim de dia eu não sou mais nada. Zero. Finito. Vazio. Torno-me nada pela incapacidade de continuar. Torno-me nada porque todos os dias eu desisto. Desisto de tentar de ser eu mesmo, desisto de aprender, desisto até de amar. Mas desisto por um bom motivo. Desisto porque quero tentar de novo, e de novo, e de novo pra todo o sempre. Quero ser melhor, quero aprender mais, quero amar mais. Eu quero juntar todos os cacos e um algo a mais, pra dar orgulho ao eu de ontem e à todos aqueles que me fizeram ser quem sou.

Juntar os cacos é preciso, porque do contrário a gente só desiste sem motivo. Os momentos de frustração, de dor, perda, raiva, ódio e angústia vão existir. O mundo vai tentar nos destruir e garanto que nossa mente não fica atrás, muitas vezes nós somos nossos maiores inimigos, visto que somos tantas coisas. Mas reconstruir é preciso. É necessário desejar o novo, é necessário renovar o que quebrou. Porque a gente quebra todo dia, por isso cabe a mim, a você e a todos nós querer consertar. Cabe a nós o ato de se reconciliar consigo mesmo, olhar pra dentro e dizer: Eu sou tudo isso, sempre fui, mas quero ser mais. Eu quero me transformar todos os dias para que no final isso tudo tenha valido a pena, e enfim tenha me tornado o que sempre quis ser – A melhor tentativa, uns erros e algo a mais (Eu).

Por Ford Prefect

5 comentários:

  1. Ford, cada texto seu é uma nova surpresa. Sou completamente deslumbrado pela forma que suas palavras conseguem me prender. Não sei explicar, tem algo no seu jeito de se expressar que simplesmente me dá vontade de continuar lendo. É prazeroso conhecer seus sentimentos, me sinto como um amigo de longa de data com quem você resolveu se encontrar pra falar como vai a vida. É um sentimento muito caseiro. Você tem mãos mágicas, parabéns!
    Com afeto, Argus.

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  2. 'amálgama' — vou confessar que não sou grande fã de palavras difíceis jogadas no ar, mas você usa todas elas, e essa em específico, com muito propósito. Concordo com o comentário do Argus; o leitor lê sua escrita e se sente um amigo de longa data, como se estivéssemos trocando segredos (como o da sensação de se renovar) numa mesa de bar. Não sou de dar o braço a torcer, mas: brabo. Muito bom. Aguardo ansiosamente pela próxima semana!

    Com carinho,
    Inez

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  3. Ford, seu texto é uma celebração da vida. Eu me senti convidado a continuar a leitura, a cada pergunta e direcionamento que você deu .Você foi cortando o mato à minha frente, segurando os galhos e eu confiei em você. Como sempre faço. Porque eu nunca me arrependo. Quando termino a leitura dos seus textos, não é como os outros, sabe? Eu também sinto certa conexão.

    Vou roubar um comentário que uma vez fizeram sobre a Clarice Lispector e dizer que você não é um simples escritor, você é um bruxo. Essa conexão é pura bruxaria.

    Abraços do Liev.

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  4. Ford, como eu disse no texto dessa semana, você é especial, tem o dom da escrita, suas crônicas são inteligentíssimas e interessantes, não da vontade de parar de ler. Esse texto não é diferente, mais uma vez você mostrou seu talento e nos encantou com um texto tão lindo, meus parabéns.
    Freddie Mercury

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  5. Ford, que escrita fenomenal, como sempre, seu texto me prendeu do inicio ao fim. Sempre bom ver como você transparece seus sentimentos. Beijos, Manu.

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