Metade
Certa vez, em uma festa, precisei debater com um semidesconhecido sobre a música Metade, da Adriana Calcanhotto, que na ocasião declarei ser uma das minhas favoritas:
Eu perco o chão
Eu não acho as palavras
Eu ando tão triste
Eu ando pela sala
Eu perco a hora
Eu chego no fim
Eu deixo a porta aberta
Eu não moro mais em mim
Eu perco as chaves de casa
Eu perco o freio
Estou em milhares de cacos
Eu estou ao meio
Onde será
Que você está agora?
Ele, estudante de exatas (e, possivelmente, um misógino inveterado), resolveu interferir na minha fala para questionar a qualidade da música e explicar que era fisicamente impossível estar, ao mesmo tempo, partido em milhares e ao meio.
Hoje, como reflexo dos anos de pandemia, eu responderia que ele deve ser um caso assintomático do vírus da poesia, mas na época fiquei mais surpresa com o teor do comentário: não estariam todos familiarizados com o sentimento de perder-se em meio aos cacos?
Lembro de ter vagado tantas vezes por lojas de departamento, colégios e meios de transporte procurando um espelho ou qualquer coisa que me refletisse, pois até o mais simples diálogo com o Outro me fazia esquecer quem eu era. Como diria Clarice, “esquenta-me com a tua adivinhação de mim, compreende-me porque eu
não estou me compreendendo”.
Lembro também de você. É agridoce pensar que naquele dia em que nós nos deixamos ir, eu já tinha ido. Já conhecia outras bocas, outros cheiros e outros futuros possíveis. Já tinha cometido pecados inabsolvíveis. Você me culpava porque nada era mais como antes. Eu achava uma afronta você continuar sendo a mesma de sempre. E então, a vida seguiu. Pela metade.
Às vezes, me sinto pequena e desejo que me tomem nos braços. Em outros momentos, me enxergo grande demais e preciso controlar os impulsos de arrancar meus membros, um por um, para então me tornar pequena outra vez.
Tenho muito medo, é claro. Medo de me podar demais e não sobrar nenhum grama de carne, ou de Karmen. Medo de querer ser amada e terminar sendo ninguém. Não existir.
Todos os dias, abro as cortinas e me disponho a encontrar meu lugar no mundo. Mas tenho tentado entender que caber no Outro não é o bastante. O desejo que mora aqui dentro não se encerra em ninguém.
Por Karmen Chameleon
Karmen, seu texto foi bem claro e ilustrativo. Não sei muito o que dizer além disso, e isso é um elogio. Você é tão boa no que faz que acredito que seria ofensivo eu tentar aumentar a magnitude de um talento que já é nato por si só.
ResponderExcluirCom afeto, Argus.
Karmen, Derrida fala que mesmo que se o outro falasse a mesma língua que a gente, incluindo aí tudo que se pode compartilhar quando o outro partilha uma língua, mesmo assim, ele ainda seria o outro, o estrangeiro. Quando olhamos para o passado, mesmo que o nosso passado, nós somos estrangeiros de nós mesmos. E eu, quando leio você falando de si , só posso olhar como estrangeiro e dizer que o "Eu" não não se encerraria mesmo no "Outro". Você não se encerraria em mim, nem eu em você. Ou sobramos ou ficamos em excesso.
ResponderExcluirAté quando estamos lidando com nossos cacos, estamos usando parte de nós que não deveriam ser julgadas com o olhar de outro tempo. É cruel demais.
E acredito que isso de se podar tenha muito a ver com esse julgamento que fazemos, sabe?
Amei o seu texto. Um brinde ao bobão de exatas que ficou procurando defeito na poesia. Coitado.