sexta-feira, 6 de maio de 2022

 DIA DA MARMOTA

Como pode uma pequena marmota de fato ser certeira na previsão do clima de uma região? Ou pior, como uma quantidade considerável de pessoas acredita que uma marmota possa prever o clima? Fato é que, sim, isso é uma tradição – diga-se de passagem, estadunidense e canadense; em nossa latitude equatorial, onde olhamos o sol e ele nos olha assim como aquele menininho da matilda olhava para o bolo de chocolate, doido para atacar e deferir suas implacáveis rajadas de luz e calor; não existe nem inverno, que dirá marmota – e pasmem, o bichinho às vezes acerta.

Diz a toda poderosa lenda da marmota, que se nosso amado animalzinho sair de sua toca no dia 2 de fevereiro,e o dia estiver nublado, a primavera chegará logo! Ufa, que alegria! Mas também existe a outra possibilidade, uma mais obscura... se a marmota sair de sua toca e o dia estiver ensolarado, fazendo com que aquela bolinha de pelos olhe para sua sombra e se assuste, voltando rapidamente para sua toca; o inverno terá pelo menos mais seis semanas. Um terror não é mesmo – disse a pessoa que nunca viu sequer um floco de neve na vida, o mais próximo disso foi o gelo do congelador.

Falando em marmota, Feitiço do tempo, filme de 1993, utiliza a história da querida marmotinha como fundo, e coloca seu personagem principal num looping eterno, revivendo o mesmo dia incontáveis vezes. O personagem de Bill Murray é um jornalista que vai cobrir o dia da marmota numa cidade pacata da Pensilvânia, onde realmente existe a tradição de acompanhar a decisão da bola de pelos dentuça. Murray vive o mesmo dia zilhonésimas vezes, transitando de estágios de ansiedade, negação e cansaço até a euforia de redescobrir como viver a vida adaptando-se àquela situação extremamente desgastante. Ele se reinventa, se redescobre, percebe como tirar vantagem daquilo e se sentir feliz, até que descobre uma real motivação para continuar tentando se tornar melhor a cada dia; e enfim se vê livre do feitiço.

E não seria a vida sobre isso? Sobre se reinventar, se redescobrir, tentar coisas novas diariamente, assassinando compulsivamente o tédio, a monotonia e a maior inimiga daqueles que não conseguem se encaixar no ritmo insano da sociedade – a rotina!

Ok, ok... mas onde eu quero chegar? Por que este pensamento me trouxe até aqui? Bom... eu sei muito bem o porquê. Admitir pra nós mesmos que nossas próprias ações são aquelas que mais nos machucam é complicado. Colocar na cabeça que nós somos o nosso maior inimigo, por vezes é confuso e até mesmo contraditório. Mas sim, é verdade. A palavra-chave desse fluxo de pensamento é rotina. Por que eu pensaria nela tanto assim? Por que isso é algo que me incomoda tanto? Talvez seja porque eu não a suporte. Mas a verdade é que simplesmente sou incapaz de me adaptar. Não há algo que eu consiga fazer todos os dias senão comer e respirar. A ideia de ordem, linearidade dos fatos e repetição até o aperfeiçoamento de uma tarefa me assusta. Me assombra também a ideia de que um dia as novidades da vida possam se esgotar, que o brilho no olhar e tesão pelo descobrimento do impensável se vá por completo. Viver incontáveis dias da marmota, não literais, é claro, mas durante diferentes dias, anos e décadas, vendo seu tempo se esvair e se vendo preso numa situação em que claramente não há mais chance de mudança; acho que o que era pra ser comédia virou um filme de terror.

Esse paradoxo onde me sinto mal por ser incapaz de ter uma rotina e fazer da minha vida algo mais regrado, saudável e ordenado, e o asco imediato relacionado à qualquer pensamento ou mera possibilidade de um futuro com caráter imutável, sem o mínimo de diversão por parte das peripécias do destino; me leva a crer que, sim, eu mesmo não permito que eu crie situações rotineiras. O engraçado é que não tenho como saber se isso seria bom ou ruim, apesar da inicial e radical recusa. Sinceramente tenho medo do que poderia se tornar um relacionamento de longo prazo com alguém, ou até mesmo conseguir um emprego bacana mas sem muitas mudanças no dia-a-dia. Eu me autossabotaria? Eu me permitiria viver algo assim? Ou a eterna recusa sobre o que pode me fazer bem mas me parece um pouco chato me faria jogar tudo para o alto?

Bom, tudo isso é impossível de prever. E com certeza o melhor a fazer seja tentar, não deixar que eu mesmo me prenda, e sempre que necessário fazer como murray no dia da marmota, ressignificar cada momento, transformar aquilo, mesmo que rotineiro, em algo novo, inédito, incrível. Quem sabe assim, eu encontro o real propósito ou significado que tanto busco nas coisas. Só não poderia ressignificar tanto as coisas de modo que a vida passasse de um “Feitiço do tempo” pra “A morte te da parabéns”, ou pior, parecido com “No limite do amanhã”. É... aí com certeza já seria demais.

Por Ford Prefect

3 comentários:

  1. Ford, adorei as referências! Durante bastante tempo, também tive problemas com rotinas, me negava a criar uma, mas hoje as enxergo como necessárias. Não significa que temos que viver numa realidade tediosa, rotinas não precisam nos dominar, momentos não rotineiros precisam ser vividos também!

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  2. Querido Ford, parabéns pelo seu texto! Muito bem escrito e cheio de referências. Gostei que você as retomou no final, fechando o texto perfeitamente. Em relação à rotina, comecei a refletir sobre mim e percebi que não conseguiria viver sem ter uma. Isso me atrapalharia um pouco. Ao mesmo tempo, a rotina também me sufoca ao ponto de eu não conseguir viver outros momentos fora dela. Acho que a chave seria conseguir conciliar a nossa rotina com os momentos não rotineiros.

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  3. Que crônica incrível! As referências são maravilhosas, assim como a reflexão que você propôs! Também tenho um certo medo e preguiça de rotinas, parece que não estamos vivendo tudo que o mundo pode nos oferecer. Logo, entramos em uma paranoia descartando tudo de bom que a rotina também pode nos fornecer. Minha psicóloga uma vez disse que equilíbrio é a chave, ainda não encontrei mas acho que pode ser uma saída...

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