Bagdá, agosto de 1990.
A velha caminhonete seguia rápido pelas ruas de Bagdá. A periferia já havia ficado para trás. O iraquiano continuava a pensar na mulher e na pequena filha.
Na semana anterior, a escassez de alimentos começara. Nada chegava à periferia desde o início dos bombardeios, e o mínimo estoque de comida que o iraquiano havia conseguido preparar era insuficiente. Sua filha precisava se alimentar. Porém, nenhum mercado abria as portas há dias, temendo as bombas americanas. Não lhe restava alternativa, se não arriscar-se no coração do conflito.
Outrora movimentadas, as ruas do centro agora eram um dos principais alvos de ataque; os boatos de que soldados de Sadam usavam prédios como ponto estratégico de observação era um perfeito pretexto para os americanos. Entretanto, para o iraquiano, tal pretexto desencadeava uma triste realidade: os mercados, assim como inúmeras outras construções, estavam destruídos.
Após quase uma hora de procura, o iraquiano se deu conta de que já se afastava da zona central da cidade e deveria voltar. Porém, mesmo sendo imprudente, optou por continuar rondando com o veículo. Alguns minutos depois, notou que adentrava na zona das fábricas, onde havia trabalhado anos antes. Esperançoso, resolveu estacionar a camionete e perambular a pé. Por precaução, trazia consigo uma pistola.
Para sua descrença, os americanos não haviam poupado nem a antiga fábrica de leite. Num raio de muitos metros, tudo estava danificado ou completamente destruído. A fábrica permanecia, mesmo danificada, permanecia em pé, e o iraquiano decidiu que valia a pena verificar. Talvez uma ou duas garrafas de leite, pensou. No entanto, havia outro tipo de surpresa na velha fábrica.
Um homem, aparentemente na casa dos cinquenta anos, observava a destruição. Seus trajes não eram normais de um iraquiano; a camisa social remetia à um americano. Além disso, tinha algo em mãos.
— Parado. — falou o iraquiano, apontando a pistola para o homem. — Quem é você?
O homem virou-se. Colocou as mãos para cima, e respondeu num árabe simples:
— Jornalista. Jornalista. — Trêmulo, o homem novamente acrescentou: — Jornalista.
Não fazia sentido, e o iraquiano seguia desconfiado. Semanas antes, houvera um êxodo de jornalistas estrangeiros, temerosos pela guerra e ansiosos por deixar o país.
— O que faz ainda em Bagdá? — indagou o iraquiano. — Perdeu-se de seus iguais?
— Eu... resolvi ficar. — respondeu o homem. — Sou o único que ficou. Meu nome é Peter. E você, o que faz aqui?
O iraquiano abaixou a pistola. Não gostava do homem, mas não era um assassino.
— Procuro comida para minha filha. Trabalhei nesta fábrica, anos atrás.
— Esta fábrica foi bombardeada alguns dias atrás. Os americanos disseram que aqui era um local de produção de armas bacteriológicas. — falou Peter. Parecia incomodado e insatisfeito. Por fim, estendeu o objeto que tinha em mãos ao iraquiano: — pode tirar fotos minhas?
O iraquiano assentiu. Peter pegou várias colheres de plástico do chão e pediu para que a foto fosse tirada.
— O que fará com a foto?
— Mostrarei a verdade. — respondeu, decidido. — Não havia produção alguma de armas aqui. O povo americano precisa saber.
O iraquiano arregalou os olhos.
— Vai traí-los? — perguntou.
— Não. — começou Peter. — Não vou traí-los, pois não estou do lado deles. Não estou de lado algum. Aqui, estou apenas mostrando a verdade. É o que devo fazer.
Os dois homens saíram juntos do que havia sobrado da fábrica. Afinal, o iraquiano encontrara um enlatado de leite em pó. Mesmo feliz, ainda tentava entender por que o tal jornalista estava ali. Por que iria trair os compatriotas. Para ele, a neutralidade não era possível. Ao indaga-lo novamente, Peter respondeu:
— Esta neutralidade existe, amigo. — sorrindo, completou: — E deve se chamar jornalista.
Amon Valapar
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