Aprendi com Peter Arnett

Passei no mercado hoje e comprei três caixas daquele biscoitinho envolto por chocolate... desses que, quando come, você pede bis. Não estava com muito tempo para coisas tolas, mas mesmo assim liguei a TV, porque antes de cumprir minha tarefa precisava distrair a mente um pouco. A televisão estava no canal de notícias, e o canal transmitia o depoimento de um certo ex-presidente a um certo juiz, que está em evidência por conta de determinada operação, que tem mexido (ou pelo menos tentado mexer) com as estruturas políticas do país. Eu disse que o depoimento era transmitido, não foi? Na verdade, estavam sendo transmitidos trechos. Trechos editados. E só me dei conta disso porque, antes de sair para ir ao mercado comprar meu chocolate, assisti na internet o depoimento completo. Quando percebi a situação à qual aquele jornalismo me levou, desliguei a TV e perguntei a mim mesma: o que eles querem que eu saiba? 

Quando eu tinha dezesseis anos meu pai faleceu. Falando assim parece que se passou muito tempo, mas agora eu só tenho dezessete. Me lembro bem que, quando eu queria fazer a ele algumas daquelas perguntas encabuladas de adolescente, ele, como homem direto e íntegro que era, dizia logo: "O que você quer saber?" Eu, como fui uma adolescente mais encabulada que as perguntas que fazia, acabava respondendo: "Nada, pai. Deixa pra lá." Agora que ele não está mais aqui, me arrependo de ter desistido das respostas que realmente queria. Se hoje tivesse oportunidade novamente, eu diria: "A verdade, pai. Eu quero saber a verdade." 

Querida imprensa, eu não estava com tempo para coisas tolas, mas julguei que, por ser um canal de notícias, não estaria perdendo tempo. Quando fui cumprir minha tarefa, que consistia em aprender sobre a vida de um correspondente de guerra, descobri uma coisa sobre a verdade: ela exige coragem. Você pode receber treinamento militar, portar uma arma, aprender a usá-la, ir ao campo de batalha. Mas se não estiver disposto a falar a verdade sobre o que vir e viver nesse lugar, estará faltando só... o essencial. Quando fui cumprir minha tarefa, descobri alguém que não deve nada a ninguém. Peter Arnett. O nome se repetiu diversas vezes durante o texto, e se repetirá em minha mente todas as vezes que eu precisar de coragem. Não aquela necessária para saltar de paraquedas, ou transitar livremente em qualquer lugar da cidade do Rio de Janeiro (já que estamos falando em guerras). Falo da coragem necessária para relatar que, num salto de paraquedas, o voo é sensacional, mas a sensação é de estar morrendo e vivendo ao mesmo tempo; coragem para dizer de quem é a culpa do Rio de Janeiro ter se tornado uma zona de guerra. Coragem, prezado canal de notícias, para não editar falas de nenhum dos lados de um depoimento. Coragem de deixar a população tirar as próprias conclusões, e tomar as próprias decisões. 

A ideia do chocolate era comer um a cada duas páginas lidas, mas nem precisei de estímulo. Descobrir que uma pessoa é capaz de fazer piadas a respeito de entrevistar ditadores e terroristas (e passar por situações constrangedoras por isso) e, ainda assim, não perder a seriedade e eficácia de seu trabalho, é estimulante o suficiente. Começar a leitura sobre essa pessoa percebendo que ela faz questão de evidenciar o valor das mulheres no meio do jornalismo é encorajador. 

Cumprindo minha tarefa eu aprendi, pai: eu quero saber a verdade. Você estava super certo ao perguntar. No jornalismo, a profissão que estou buscando, quero fazer a mesma pergunta àqueles a quem me dirigir. A contaminação dos interesses é forte, mas quero responder a pergunta que eu mesma me fiz ao desligar a TV mais cedo. Não sei o que eles querem que eu saiba, mas eu quero que todos saibam a verdade. Aprendi com Peter Arnett. 

Carolina Caracol