- Hoje vamô troca um
poco, Corvo.
- Trocar?
- É. Minha vez de
perguntá. Quero ouvi sua história. E, eles também. Aproveita que
falamos de mim da última vez. Agora, fala de você.
- Não tem muito o que
falar. Você sabe como sou, meu caro. Sabe o que faço. Porquê
encher linhas de texto com isso?
- Eu sei. Eles não.
Bora, fala.
- Farei melhor, sim,
muito melhor... vou contar uma história. Assim deve ficar mais
claro, sempre fica mais claro, não é? Serve?
- Ah... Vai tê que
servi né...
- Muito bem, muito bem,
muito bem, quem valeu mesmo a pena ter comido? … Sim... Uhum... Ah!
Sei, sei bem de quem falarei. Sente-se Mecânico, isso, coloque o
skate de lado. Saia debaixo do carro. Falemos de um homem que amava
as mulheres em sua vida. Falemos de Peter!
“Quando o comi ainda
podia sentir os restos. Depois do sexto, sétimo você passa a
identificar um viciado. E era esse gosto que eu sentia – uma pele
curtida por Sol e sujeira, cobrindo uma testa... grande, isso, uma
testa grande, e um corpo escondido pelas roupas de uma infantaria.
Mas, porquê o gosto de um viciado? Porquê esse homem era do tipo
que se atirava na cama com sua mulher e fazia com ela o mais belo
amor. Vigoroso mesmo, incansável. Essa esposa, que ameaça ir para o
túmulo com ele, aquela com quem ele jamais se divorciaria. E quando
se atirava, sentia o vício, satisfeito. Seu vício por adrenalina.
“Peter era um viciado.
“Nesse dia em que eu
esperava para bicar seus pés calejados – alguns não gostam, eu,
particularmente, adoro – vi pouco a pouco aquela fileira de, esses
sim, corvos, vindo em sua direção. Eu apenas como o morto –
esses o depredam de suas histórias, um saque! Só para não se
sentirem deixados para trás. Então, lá estava eu, sob a sombra de
uma árvore esperando que fossem embora. Eles vinham um a um.
“Embora estivesse
casado até o dia de sua morte, ele tinha suas amantes. A primeira
ficara com ele por dezenove anos. Nina fora afável no enterro. Ela
deixou-lhe a flor das margens do rio Mekong, agora que não ela, mas
ele, havia, afinal, se afogado nessa história, levando com ele sua
amada. Uma curiosa história de amor – a verdadeira esposa de
Arnett lhe apresentara os dois e ou não vira, ou permitira que esse
caso desenvolvesse dois filhos. Filhos que viriam em seguida. Acho
que ela não se importava, essa primeira esposa. Sabia que ele sempre
voltaria para ela, não importava quanto tempo ficasse com Nina.
“Foi, então, a vez
dos filhos. Andrew ainda achava que os aqueles assuntos não haviam
sido totalmente resolvidos. Desde o Kuwait que achava isso. As
palavras de Simpson, esse mesmo, o senador, ainda lhe ecoavam, eu via
em seus olhos – as acusações de que seu pai apenas permanecera no
Vietnã por ter seu cunhado entre os vietcongues machucaram na época,
e machucavam agora. Ainda mais quando chegou ele.
“Powell fora bem mais
solene do que era esperado. Cumprimentou Andrew, que ainda lhe torcia
o nariz, talvez com menos força do que antes. Quando o fazia
lembrava o nariz torto do pai, com um sorriso que puxava para cima as
bochechas caídas. Não havia, para Powell, espaço para isso ali. Já
torcera o nariz o suficiente para Peter em vida. Parara naquele
Starbucks a tanto tempo. Afinal, também ele, Colin, fora o laureado
com a medalha de “melhor pai”. E como melhor pai, sabia a dor que
sentiríam seus filhos numa hora como aquela. Era então a vez de
Elsa.
“Derramava-se, a
garota. E mesmo em meio a tristeza de perder o pai, eu via naqueles
olhos um sopro – hereditário, claro – do jornalista que fora o
pai. A lenda, diriam alguns, mas que para ela continuava sendo apenas
papai. Arnett era do tipo que amava, e amava mulheres muito bem. Fora
assim com sua eterna esposa, com sua amante que durara dezenove anos
ao seu lado, com a filha que lhe era muito querida. Acompanhava-a
Bianca, com um músico que...bem, não sei bem quem é, mas que deve
ser o próximo no menu.
“Conversamos, eu e
Peter, antes dessa situação toda. Éramos íntimos, sabe, muitos de
seus colegas lá pelas bandas orientais foram minhas refeições
também. Bons pratos, os que desciam dos helicópteros. Assim como
faço com você, meu caro Mecânico, conversamos um cado. E bem, ele
me passou alguns trechos que merecem serem contado, como merecem!
“Um deles dizia
respeito a uma xícara de café. Ele dizia que era amarga aquela
xícara no Starbucks. Era bom, no peito o peso da medalha de melhor
pai, mas ainda assim, amarga por estar dividindo a xícara com
Powell. Powell, logo Powell! De todas as... mas parou, e então
começou a perceber. Ele... estava... tomando uma xícara de café,
no Starbucks, com Colin Powell! Viva a democracia!, ele diria, esse
adoçante que temperava qualquer café.
“Ele também me contou
de suas mulheres. Ainda não entendia quem eu mencionava quando
falava de sua primeira esposa. Mas eu não ligava. Raramente
lembramos, não é, nessa altura do campeonato, de quem realmente era
a mais importante. Me falou de como Moore era doce, um docinho, como
ele gostava de pensar. Lamentou-se por Elsa e gostaria, sim, claro
que gostaria, que as coisas tivessem sido diferentes com Nina. Mas,
porém, não se arrependia. E acho que o respeitava por isso. Não,
eu certamente o respeitava por isso. Era da guerra, esse homem já
enfraquecido, mas não era soldado – logo onde ficavam seus traços
de guerreiro? Escondidos, bem ali, por detrás dos olhos, entre os
dedos em que segurava uma pena. Perdão, impulso poético. Caneta.
“Quem é essa esposa?”
ele me perguntou, quando terminei a entrevista, guardei as anotações,
e já colocava o guardanapo no pescoço. Olhei-o. A primeira esposa?
Eu perguntei de volta. Achei que era óbvio. A única que você
sempre foi devoto, eu lhe disse. Aquela que te consumiu, como eu vou
consumir!, exclamei. A palavra, Peter.
“Sua esposa, a
palavra.
Ele riu, riu com gosto,
uma risada cheia, e fechou os olhos. Foi quando o velório começou.”
- …
- É uma excelente
história, não acha?
- Boa. Corajoso esse ai.
- Nada, nada de
corajoso. Inconformado. Não ficou na Nova Zelândia. Quando liguei
falando da entrevista, ficou animado. Disse que tinha uma baita
notícia pro cara lá em cima.
- Ah é? Qual?
- Ele chamava de
Biografia.
O Corvo e O Mecânico
Muito criativo, mas as vezes um pouco confuso. As "mulheres" de peter foi uma otima sacada do autor.
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