sexta-feira, 12 de maio de 2017

O cheiro de Arnett

A direção era sofrível pelo solo acidentado de Damasco. Os solavancos incomodavam como algo que me dissesse que eu não devia estar ali. Claro, não mais do que estar sentado entre dois homens armados no banco de trás de uma van com destino ao quartel-general dos rebeldes sírios. E aquele cheiro me acompanhava. Parecia estar impregnado na van. Só podia ser coisa da minha cabeça. Muitos se perguntam porque um homem já quase na casa dos 50 precisa passar por isso. Eu também o faço. Românticos diriam que o amor é um risco. Nunca estiveram no Oriente Médio. Penso que devia ter rabiscado mais alguns. Mas penso para afastar o medo. Em meio a medos úteis e pensamentos inúteis, mergulhei no negro de minha vista tapada pela venda e me afoguei nas lembranças.
***
Era início da década que vocês chamaram de perdida por aqui. O mundo ocidental ainda comemorava a queda do Muro de Berlim e esperava pelo iminente fim da União Soviética. O local era um auditório de universidade - eu estava no último ano. A palestra? De um dos melhores correspondentes de guerra da história.

Aquele senhor era apaixonado pelo que fazia. Se colocava em perigo em prol da verdade. Um homem que teve a coragem para mudar os rumos do que a imprensa noticiava no Vietnã, que decidiu desafiar a credibilidade do governo mais poderoso do mundo. Persona non grata na Casa Branca. Para ele, prevalecia a verdade, mesmo que contada pelo inimigo. Aliás, inimigo de quem? Um humanitário!

Arnett parecia o senhor da verdade. Soube de tudo, esteve em todos os lugares. A onipotência da Associated Press e da CNN conferiam-no a onipresença necessária para tornar-se onisciente. Mas não como Deus. Na verdade, seria mais como o Diabo. Hades, para ser mais exato. Por falar em demônios, precisou certamente exorcizar seus próprios para encarar sabatinas com seres humanos tão terríveis quanto o próprio. Mas pensando bem, não deveria ser Ares? Enfim, as vezes eu o via como o arauto do caos, o confundia com a notícia. Como condição sem a qual os fatos simplesmente não aconteceriam. No final das contas, não sabia se ele estava aonde aconteciam os fatos ou se os fatos o procuravam. Talvez um pouco dos dois.

Ao final da palestra, apertei sua mão e falei que um dia queria ser correspondente de guerra. Me desejou sorte e disse: “Faça o que ninguém faz. Vá aonde ninguém vai”. Lembro de suas palavras como se fosse hoje. Lembro-me também do cheiro que exalava. Era diferente, incomodava. Me tirava da zona de conforto. Uma escolha ruim de perfume, talvez? Cheiro de guerra? Não sei explicar.

Sinto um solavanco. Sinal de que estou seguindo o conselho.

A primeira vez que o vi em ação foi em 2004. Soldados americanos ocupavam uma cidade perto de Bagdá e evacuavam a área devido a uma ameaça de ataque. Veículos do exército levavam civis para um lugar seguro. Enquanto jornalistas rodeavam as autoridades responsáveis pela remoção, indagando entre outras questões, o destino daquela gente, Arnett estava espremido junto aos iraquianos em um dos caminhões, conversando com uma mulher, que tentava desesperadamente acalmar uma criança de colo. O choro da menina, que devia ter pouco mais de um ano e meio, tornou a conversa ininteligível para mim. Peter olhava a moça fixamente, mas por breves instantes levantava a cabeça, como quem procurava por alguém - talvez um intérprete.

Eu observava aquele homem que já tinha seus 70 anos e cujo corpo já o traía na hora de subir no caminhão… O que ele estava fazendo? Os soldados mal o encaravam, cientes de sua fama, e, diferente de nós, ele não contava com a boa vontade dos militares. Sua presença era apenas tolerada. Sabíamos que a qualquer momento uma ligação do presidente poderia arrancá-lo de sua cobertura. Por que estava desperdiçando seu precioso tempo com aquela moça? Não havia nada de importante ali. Aquele não era ser o mesmo Peter Arnett ganhador do Pullitzer, não podia ser. Nossos olhares se encontraram enquanto ele procurava o intérprete. Ele não me reconheceu. Mas seu olhar de lince, de quem sabia exatamente o que estava fazendo, arrepiou-me a espinha. Senti de novo aquele cheiro incômodo.

Mais tarde, de volta ao acampamento disponibilizado para nós pelo exército, perguntei-lhe sobre a iraquiana. Arnett comentou que seu leite havia secado e ela não podia mais alimentar a criança. Disse ainda que na capital Bagdá havia alimento, mas que a mulher foi retirada de lá antes da cidade ser alvejada. Concluí que o choro da menina era de fome. Avisei a ele que os caminhões seguiram para abrigos norte-americanos onde aquelas pessoas teriam assistência. Peter ouviu atentamente, mas, para ele, era evidente que sua história era mais importante. Foi a segunda vez que falei com ele.

Dias depois, um furo da CNN contrariava a versão do governo sobre um bombardeio em suposto laboratório de armas biológicas em Badgá, disfarçado de fábrica de leite. A reportagem mostrava a dura realidade: imagens de colheres de plástico espalhadas e pó para todo o lado - de escombros e leite. Assinada por Peter Arnett.

Do Iraque à Síria aprendi muita coisa. Aprendi que a Primavera se torna Inverno muito rápido em ambos os Hemisférios. Aprendi de George à Donald não muda muita coisa e que o Uncle Sam não consegue deixar seu red, white and blue de problemas.

***

Ouço um sotaque carregado falando a minha língua. Chegamos. Tiram-me a venda, ainda está tudo escuro. O cheiro, fortíssimo, me inebria e quase me derruba no chão. Por um momento, pensei que iria encontrar Peter Arnett dentro daquela caverna, mas não. As tochas se acenderam e consegui enxergar o rosto do líder rebelde. Atrás dele, um homem. Na mão apenas papel e caneta dados pelos próprios guerrilheiros. O líder pronuncia algumas palavras em árabe e o outro homem se aproxima de mim e diz:

“Ele está perguntando se a viagem foi tranquila, americano. Vamos começar.”

Era cheiro de notícia.

Setekh, O Redimido

Um comentário:

  1. Peço desculpas de antemão aos colegas pelos erros. Vamos às erratas:

    8º parágrafo: "Aquele não era o mesmo Peter Arnett ganhador do Pullitzer, não podia ser."

    11º parágrafo: "Aprendi que de George à Donald não muda muita coisa e que o Uncle Sam não consegue deixar seu red, white and blue longe de problemas.

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