sexta-feira, 5 de maio de 2017

Quem pode mais, chora menos



Em uma pequena cidade do Nordeste brasileiro, com uma população pacata, mas que apresentava uma heterogeneidade de saltar os olhos no que se diz respeito à condição financeira de seu habitantes, a vida era levada de maneira muito tranquila e pacífica. Isso porque o sentimento de harmonia entre os cidadãos era costumeiro naquele município. O que deixava os ânimos daquele povo um pouco mais acirrados eram as épocas de estiagem, mas nada que causasse um desespero, afinal, o grande poço da cidade conseguia abastecer grande parte das famílias que ali viviam.

Porém, em um certo ano, a rotina dos moradores de Temerlândia passou a mudar assim que uma intensa seca causou enormes prejuízos à cidade, tanto econômicos quanto sociais. O que fez com que esse período fosse tão danoso foi o fato de que o poço, que conseguia servir de fonte de água pra boa parte dos cidadãos, começou a apresentar níveis muito mais baixos do que o usual. Sendo assim, alguém teria que ficar sem ter acesso ao poço, para que outros pudessem usufruir do privilégio de contar com o recurso hídrico. E o grande dilema era: como resolver essa questão? Além do mais: como fazer para que o poço voltasse a atingir os níveis desejados de água?

Durante aquele momento, em que o poço já não era mais uma reserva aproveitável, já que a água se encontrava em locais onde ela se misturava com a terra e outros resíduos, ou seja, deixava de ser potável, o único recurso era trazer a água de cidades vizinhas. No entanto, não eram todos os habitantes de Temerlândia que podiam realizar esse movimento diário, por diferença nas condições sociais. Enquanto uns eram detentores de veículos automóveis e se locomoviam facilmente, outros no máximo tinham uma charrete que servia só para locomoção interna.

Aquele era um processo que desagradava gregos e troianos, e por conta disso, a prefeitura da cidade resolveu tomar uma decisão: os moradores iriam ter de começar a eles próprios abastecerem o poço, contribuindo com certas quantias de água que eles pudessem trazer das cidades vizinhas. Entretanto, essas contribuições não se dariam da mesma maneira. Ficou estabelecido o seguinte formato: aqueles, cuja renda fosse menor, e que por consequência da dificuldade de locomoção, levassem menos água de volta para Temerlândia, seriam aqueles que mais teriam de abastecer o poço, com 60% do total que tivessem obtido; enquanto aqueles de classes sociais mais altas, teriam de contribuir com apenas 10% da água que trouxessem de volta consigo.

Obviamente, essa foi uma medida impopular, que desagradou grande parte dos cidadãos, que em sua maioria, compunham o grupo daqueles com renda mais baixa. A grande pergunta que se fazia era: por que quem mais tinha acesso a água antes e depois do poço secar, eram os que contribuíam de menos? Nunca se teve uma resposta concreta para tal questionamento. E o que restou àquele povo mais humilde foi continuar ralando por tempo indeterminado, sem previsão de poder tirar um tempo pra descansar ao final da vida, pra poder fazer com que o poço pudesse continuar abastecendo o alto escalão de Temerlândia. Até hoje os moradores de lá esperam uma tomada de decisão mais consciente por parte de seus representantes, que insistem em fechar os olhos paras as parcelas menos favorecidas da população.

Kevin Dezap

3 comentários:

  1. Um texto de fato muito bem escrito. No entanto, o desenrolar da história cria uma expectativa no leitor de um final mais surpreendente, o que infelizmente não sucedeu. O autor também faz uso de algumas palavras pomposas no texto, mas nada que impeça o entendimento do mesmo ou que comprometa a perenidade de sua crônica. De qualquer forma, parabenizo. Muito bem escrito.

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  2. Concordo com Louie. No geral, o texto é bem escrito. Há bons elementos alegóricos, como o poço, que representa bem a ideia que você quer passar. No entanto, senti falta de uma constância. Você utilizou Temerlândia como nome da cidade e a situou no Nordeste do país. Talvez Temerlândia representasse melhor o Brasil como um todo - e não uma cidade específica. Acho que ocultar a localização ou não utilizar nomes seria mais interessante.

    Sobre utilizar o prefixo "temer", acho que você poderia obter melhor resultado. Sunny, em seu próprio texto, utiliza a palavra "temeridade" no título. Muito provavelmente vocês tiveram intenções iguais. Mas o resultado que ela obteve ficou melhor, entende?
    Um abraço.

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  3. Ah, não me lembro se o curador já falou algo em sala sobre dados estatísticos - reais ou simulados - em crônicas. Mas talvez fosse melhor representar a contribuição dos cidadãos da cidade de um ponto de vista proporcional (desproporcional, no caso) e não percentual.

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