Quem o olhasse ali, na mesinha do canto daquela enorme cafeteria, como qualquer outro idoso em um fim de tarde no subúrbio da Virgínia, talvez não o reconhecesse e nem lembrasse tanto assim de seus feitos em prol do jornalismo. O homem já calejado com seus oitenta e dois anos, os cabelos ralos em um misto de castanho e branco, apenas nas laterais da cabeça, o olhar cansado moldado em um rosto mais cansado ainda da vida. Se parasse bem para olhá-lo, tinha algo a mais naquele olhar, talvez uma soberania maior do que a dos outros cidadãos ali espalhados pelas cadeiras pretas da cafeteria. A verdade é que naquele olhar tinha conhecimento, algo que apenas uma pessoa que viveu tanto quanto aquele idoso, poderia ter. Peter Arnett, quem não o conhecia? O famoso jornalista que ficou sozinho em Bagdá mesmo após receber mensagens explícitas para evacuar o local, e no fim ainda transmitiu ao vivo pela TV, uma guerra vista do lado oposto de seu país. De certo, todos que almejavam entrar em uma carreira direcionada para a comunicação social, no mais específico: jornalismo, tinha conhecimento da importância de sua existência, e se não tinha, em algum momento iria ter e como de praxe, amar seu trabalho e o achar importante para a evolução do jornalismo em frente de guerra. Ora, ele não se achava importante, não mesmo. Ele se achava interessante, ou foi isso que ele tentou ser por todos esses anos que trabalhou, arriscou sua vida em campos de batalha enquanto mostrava ao mundo o que era a guerra. Suspira e olha pela janela, olha e vê sua filha; Elsa anda devagar, aparentemente cansada. As roupas sociais pareciam pesar em seu corpo magro enquanto tinha seu braço esquerdo dado no braço de seu esposo, John Yoo, um sul coreano simpático ao ver, e com o outro braço segura sua bolsa. Poderia estar saindo do trabalho naquele instante, estava se mostrando uma jornalista exímia e isso alegra o coração do velho Arnett que via sua garotinha crescendo. Casou-se com um homem importante, um professor de direito formado em Harvard e um importante autor. Sua família era bem-sucedida. Voltou a olhar suas mãos enrugadas em cima da mesa, lembrando de quando aquelas mesmas mãos seguravam uma câmera, sua melhor amiga durante anos de sua vida, se não por toda. As mãos que levavam a verdade para as casas alheias, as mãos que não tinham medo de mostrar o que era verdade, o que era mentira. Não ligava de ser sozinho, sabia e sempre soube que não era jornalista para ser popular; a vida de jornalista pode ser muito solitária. Riu sozinho ao lembrar que dera muita sorte por estar em solo americano, não que na Nova Zelândia, sua terra natal, fosse pior. O fato é que sempre trabalhou nos Estados Unidos, morava desde sempre por ali e mesmo mostrando a verdade sem censura e medo, mesmo trabalhando assiduamente não para o governo, mas sim para a população, nunca fora ameaçado de morte e nem tampouco verificavam se ele pagava seus impostos. Isso era algo importante na democracia americana.
Senta-se melhor no banco e ergue o pulso à altura de seus olhos, verificando o horário. Seu amigo está ligeiramente atrasado. O sininho da porta de entrada ressoa e os olhos escuros de Peter se erguem curiosos, esperando que fosse quem esperava, porém não, era apenas um homem árabe com roupas típicas de quem está pronto para um du’a em sua mesquita. Seus olhos tornam-se como túneis do tempo e seus lábios se arrastam até formarem um meio sorriso, aquele sorriso de canto um tanto murcho. Lembra-se do dia em que estava em Bagdá, hospedado em um hotel e um oficial iraquiano o chamou no lobby antes de comunicar que teria uma entrevista importante e por isso era melhor vestir um terno. Porém, o que adiantou no fim das contas, não? Me despiram, fiquei nu na frente de quatro soldados enquanto mexiam em meu corpo, nas minhas coisas, documentos... não era mais fácil vestir meu terno depois? – Pensa de imediato enquanto vê o homem pedir seu café no balcão, sem nem o notar um pouco ali atrás, o fitando discreto. Arnett balança a cabeça negativamente e ri consigo mesmo ao ter lembranças do dia em que viu Saddam Hussein pela primeira vez. A parte boa é que não tive que higienizar minha boca. Do contrário, pensaria que acabaria os beijando em alguma hora. – Retoma a linha de raciocínio antes de rir novamente e ver o homem cujo tinha servido de fonte de lembrança, sair pelas portas da cafeteria com seu enorme copo de café. Olha para si mesmo e vê que o primeiro botão de sua camisa está desabotoado e logo o faz Há tempos havia abandonado as roupas de guerrilha com um enorme indicativo de “imprensa”, e as sociais eram apenas para ocasiões especiais: agora era seu momento de usar camisa social de manga curta, com calças mais à vontade... sua idade já o transformava um tanto.
Novamente o sino toca e o homem olha para frente, vendo o também idoso Colin Powell ali. Os cabelos brancos bem curtos, os óculos de grau se equilibrando no nariz; parecia cansado. O corpo vestido formalmente com uma calça social, sapatos bem engraxados, uma camisa branca escondida por um terno preto bem alinhado e uma gravata azul ciano. Aquele homem parecia alguém importante onde quer que pisasse. Provavelmente estaria voltando de algo importante. Peter ergue o braço e acena, estava ali a sua espera. Era espantoso imaginar que anos atrás, ainda na guerra do Vietnã, Powell, um comandante de companhia, e seus colegas não aprovavam a cobertura jornalística que Peter Arnett e outros jornalistas faziam. Quando foram ao Golfo, houve mais uma crítica para com a cobertura na guerra. Democracia americana ou não, agora ambos moravam há apenas quadras de distância e tomavam café na Starbucks com frequência.
– Hoje faz vinte e seis anos desde o fim da Guerra do Golfo, velho Arnett. – O ex militar comenta ao sentar-se à frente do jornalista que sorria.
– E vinte e cinco anos desde que ganhamos aquele prêmio de “pai do ano”, no evento beneficente. – Suspirou. Realmente estava velho. – Estamos velhos, ein?
O outro apenas assente, o rosto calejado pela idade tanto quanto o homem à sua frente. Pelo menos estavam vivos, diferente dos amigos que deixaram para trás naquela guerra.
– É, meu amigo, estamos...
- JACKSON
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