quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Da Família

A juventude é um período mágico, eu sabia disso. Mas, por minhas condições econômicas, tive que trabalhar desde os 8 anos como empregada, em diversas casas. Aos 25, na melhor fase da minha vida, estive numa casa em que permaneci até os 50. Me dediquei a atender as necessidades de um casal de idosos ricos e brancos, cumprindo a função de dezenas de funcionários, como motorista, cozinheira, jardineira, faxineira, pintora e até eletricista. Nunca me entreguei tanto a algo. Todos esses anos trabalhando lá tornou a mim e minha patroa pessoas muito próximas, “é como se fosse da família”, ela dizia. Entretanto, quando o marido morreu de covid-19, as máscaras não só caíram, mas foram escancaradas, o feitiço se quebrou. A patroa se tornou uma bruxa, demonstrou sua verdadeira face. Ela queria que eu fizesse maiores jornadas, que dormisse e trabalhasse mais. Porém, eu tinha uma filha, meu maior amor, que não seria posto em segundo plano. A partir daí, foi ladeira abaixo. A patroa viu que não era prioridade em minha vida. Foi nesse momento que ela expurgou toda podridão que havia dentro de si, que esteve presa por tantos anos. A família se desintegrou como um castelo de areia que se desmancha ao se encontrar com a água do mar, um castelo construído a muitos anos. 


“NEGRINHA!”, ela gritou. Em seguida, muitas outras humilhações, inclusive suspeitas de que poderia tê-la roubado. 25 anos servindo uma família, mas me trataram como se fossem 5 dias. Isso foi um choque, estava sem emprego, sem chão, decepcionada. O desespero e a tristeza tomaram conta de uma felicidade diária, mas, como sempre digo, “tudo passa”, e realmente passou.  A partir daí, comecei a focar na minha paixão: plantar. Foquei tanto nisso, que a varanda do meu apartamento era pequena demais para minha criatividade. A terapia que me concede o ato de cuidar e amar minhas plantas foi essencial para realinhar meus chakras nesse momento turbulento. Hoje, renasci, feliz como nunca, leve e realizada. Meu horto está repleto de vida, que do meu caos interno, floresceram.



- Lua Nova

2 comentários:

  1. Oi, Lua Nova! Então, a primeira parte da crônica é terrível! O pior é que é a realidade de muita gente, esse negócio de empregada como "da família" é algo tão complicado e estranho e eu só consigo pensar que é uma herança histórica da sociedade brasileira escravista... enfim! A segunda parte, a de plantar e criar vida, realinhar chakras é maravilhosa. Tem algo sobre isso que você simplesmente entra em contato com a natureza e se sente puro e calmo. Obrigado por esse texto!

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  2. Lua, gostei que a narrativa que você criou traz um tema muito importante: a herança colonial. E gostei também que você, de certa forma, mostrou a importância de encontrar caminhos de fuga e alívio. Cuidar e amar as plantas também é cuidar de si.

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