sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Família Tradicional Brasileira

Na mesa de cabeceira do meu avô tem um retrato. É daqueles marrom escuro, que imita madeira

mas é de plástico. Dentro da moldura, a foto é meio esverdeada e já tá cheia de buraquinhos de

tão velha. Ele diz que foram as traças. Eu penso que foi uma espécie de karma divino. Na foto,

uma turma de militares de alguma academia maluca em 1900 bolinha e alguma coisa. É o

grande orgulho da vida dele. Acho que até mais do que os próprios filhos e netos. Inclusive

porque, o segundo filho cortou relações. Quando se assumiu gay, foi expulso de casa e nunca

mais procurou contato. No caso do meu pai: constantes crises de pânico e síndromes psicóticas -

resultado de uma infância traumática. Sempre insinuam que é o fraco da família. Minha tia, uma

advogada bem sucedida, descobriu aos 30 que era estéril. Meu avô chamou um pastor e pediu

pra retirar o demônio do corpo. Foi a cena mais comicamente ridícula que já presenciei. E por

último, o primogênito, que suspeitamente enriqueceu após comprar um lava-jato no bairro de

Realengo. Esse sim é o “filho que deu certo”, coisa que meu avô faz questão de lembrar em

todos os natais. Pra aproveitar o gancho, reitero que já cansei desses natais e páscoas e almoços

servidos de preconceito. Nos próximos, estarei em alguma praia bem longe com meu namorado.

Namorado esse, que só pela cor de pele, aturou uns comentários nojentos quando visitou meus

avós. Acho que nunca gritei tanto como naquele dia. No fim das contas, a minha avó nem ligou.

Ela só quer que o meu avô morra logo pra gastar toda a pensão com pano de prato e dízimo. E

eu também quero roubar uns livros - que ele nunca sequer encostou - da estante. Aliás, ele diz

que esses livros fazem parte de uma conspiração da nova ordem mundial. Por isso, preciso

abandonar a leitura e aprender a manusear armas. Sim. Exatamente isso que acabou de ler. Pode

rir, se quiser. Na última semana, ele me fez levá-lo ao centro da cidade pra comprar vuvuzelas

do Brasil. Ingênua, pensei que fosse para os Jogos Olímpicos. Boba, tola, inocente… Era, na

verdade, pra um desfile de tanques militares em Brasília. Se eu fiquei surpresa? É claro que não.

Olhe só para essa careca brilhante. Cheia de privilégios e ódio. O molde do brasileiro médio,

egoísta e narcisista, pode, facilmente, ser reduzido ao meu avô. Quem mais comemoraria com

tanta emoção um ataque explícito ao regime democrático? Só ele(s). Quanta aversão tenho por

esse sangue. A família branca idealizada da elite - a maior vergonha que esta breve existência

pôde me conceber. Gosto de chamar de “a família disfuncional brasileira”. Mas ninguém quer

usar o termo correto, não é?


Bic Cristal

4 comentários:

  1. Eu odeio tanto esse termo de "família tradicional brasileira". É uma ironia só: de família não tem quase nada, tradicional significa ser retrógrado e brasileiro só se for branco, hétero, cis e estadunidense. Achei interessante na sua crônica que de todas as maneiras que você poderia ter escrito sobre a imagem, você fez construindo o perfil da família até o evento. E concordo completamente, a gente precisa chamar esse tipo de gente do jeito correto... eu queria dizer que a gente vai vencer, mas não consigo. Forças para a gente!

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  2. Concordo com o Asa sobre o termo "família tradicional brasileira", mas que merda isso seria? Enfim, também achei muito legal essa forma diferente de você relatar, gostei bastante. Espero que no futuro as pessoas olhem para nossa época e vejam o que NÃO fazer, ao contrário de hoje que, mesmo com os erros do passado, decidem repetir os mesmos antigos passos. É tudo ego, resistência de aceitar que mudanças acontecem e alguns pensamentos se tornam inaceitáveis porque podem afetar pessoas. Ordem e progresso é o lema do país, mas isso se restringe apenas a uma frase, porque na prática sequer existe no coletivo.

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    1. Cada dia mais difícil viver nesse país, Melo... Foda!

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