Na mesa de cabeceira do meu avô tem um retrato. É daqueles marrom escuro, que imita madeira
mas é de plástico. Dentro da moldura, a foto é meio esverdeada e já tá cheia de buraquinhos de
tão velha. Ele diz que foram as traças. Eu penso que foi uma espécie de karma divino. Na foto,
uma turma de militares de alguma academia maluca em 1900 bolinha e alguma coisa. É o
grande orgulho da vida dele. Acho que até mais do que os próprios filhos e netos. Inclusive
porque, o segundo filho cortou relações. Quando se assumiu gay, foi expulso de casa e nunca
mais procurou contato. No caso do meu pai: constantes crises de pânico e síndromes psicóticas -
resultado de uma infância traumática. Sempre insinuam que é o fraco da família. Minha tia, uma
advogada bem sucedida, descobriu aos 30 que era estéril. Meu avô chamou um pastor e pediu
pra retirar o demônio do corpo. Foi a cena mais comicamente ridícula que já presenciei. E por
último, o primogênito, que suspeitamente enriqueceu após comprar um lava-jato no bairro de
Realengo. Esse sim é o “filho que deu certo”, coisa que meu avô faz questão de lembrar em
todos os natais. Pra aproveitar o gancho, reitero que já cansei desses natais e páscoas e almoços
servidos de preconceito. Nos próximos, estarei em alguma praia bem longe com meu namorado.
Namorado esse, que só pela cor de pele, aturou uns comentários nojentos quando visitou meus
avós. Acho que nunca gritei tanto como naquele dia. No fim das contas, a minha avó nem ligou.
Ela só quer que o meu avô morra logo pra gastar toda a pensão com pano de prato e dízimo. E
eu também quero roubar uns livros - que ele nunca sequer encostou - da estante. Aliás, ele diz
que esses livros fazem parte de uma conspiração da nova ordem mundial. Por isso, preciso
abandonar a leitura e aprender a manusear armas. Sim. Exatamente isso que acabou de ler. Pode
rir, se quiser. Na última semana, ele me fez levá-lo ao centro da cidade pra comprar vuvuzelas
do Brasil. Ingênua, pensei que fosse para os Jogos Olímpicos. Boba, tola, inocente… Era, na
verdade, pra um desfile de tanques militares em Brasília. Se eu fiquei surpresa? É claro que não.
Olhe só para essa careca brilhante. Cheia de privilégios e ódio. O molde do brasileiro médio,
egoísta e narcisista, pode, facilmente, ser reduzido ao meu avô. Quem mais comemoraria com
tanta emoção um ataque explícito ao regime democrático? Só ele(s). Quanta aversão tenho por
esse sangue. A família branca idealizada da elite - a maior vergonha que esta breve existência
pôde me conceber. Gosto de chamar de “a família disfuncional brasileira”. Mas ninguém quer
usar o termo correto, não é?
Bic Cristal
Eu odeio tanto esse termo de "família tradicional brasileira". É uma ironia só: de família não tem quase nada, tradicional significa ser retrógrado e brasileiro só se for branco, hétero, cis e estadunidense. Achei interessante na sua crônica que de todas as maneiras que você poderia ter escrito sobre a imagem, você fez construindo o perfil da família até o evento. E concordo completamente, a gente precisa chamar esse tipo de gente do jeito correto... eu queria dizer que a gente vai vencer, mas não consigo. Forças para a gente!
ResponderExcluirNem fale, Asa... O jeito é resistir.
ExcluirConcordo com o Asa sobre o termo "família tradicional brasileira", mas que merda isso seria? Enfim, também achei muito legal essa forma diferente de você relatar, gostei bastante. Espero que no futuro as pessoas olhem para nossa época e vejam o que NÃO fazer, ao contrário de hoje que, mesmo com os erros do passado, decidem repetir os mesmos antigos passos. É tudo ego, resistência de aceitar que mudanças acontecem e alguns pensamentos se tornam inaceitáveis porque podem afetar pessoas. Ordem e progresso é o lema do país, mas isso se restringe apenas a uma frase, porque na prática sequer existe no coletivo.
ResponderExcluirCada dia mais difícil viver nesse país, Melo... Foda!
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