quinta-feira, 9 de maio de 2019

Distopia

Acabo de acordar. Quem me desperta não é quem foi feito pra fazê-lo, mas o monitor que apita meus batimentos. Eles dizem que estou vivo. Ora, e estava o quê? Não sei, sinto que não me encontrava comigo mesmo fazia tempo. Também não encontro ninguém ao meu lado pra me explicar o que houve com 2013.
Vou pra casa, não quero ficar só. Todos de verde e amarelo aos berros, ninguém me houve. Fico feliz, somos a família de sempre. Nessa Copa, não há meio-campo, apenas ataques. Não sei se aquele espírito sempre esteve adormecido neles ou se foi o tempo, mas ficar ali era morte súbita. Não sabem nada sobre mim, não sei nada sobre eles. Cada minuto é como prorrogação de um Fla x Flu interminável. Não suporto estar junto.
Vou pra rua, quero me confundir com a multidão. Lá também não encontro resposta. Os que não estão amordaçados estão mudos. Ninguém é capaz de me contar o que acontece. Eu que não sei se estava em coma ou se entrei numa máquina do tempo. E pior, se entrei em uma, sequer consigo discernir se habito agora passado ou futuro. Não há carros voando, e os militares no poder dão o tom de 64. Embora pareça que estou num futuro distópico escrito pelo José Padilha, dessa vez sem pedidos cínicos de desculpa.
Vou pra UFF, a minha síntese entre casa e rua. No caminho, me falta ar: o meio ambiente está na lista negra, assim como está o céu. É noite na História e tarde para filosofar. Após fazer o antidopping, aproveito a amostra-grátis e parto para a biblioteca, em busca de algo fidedigno. No lugar dela, uma igreja, já que o único livro entendido como confiável é a bíblia. As salas de aula, igualmente povoadas por mudos e amordaçados, só ecoam a live de um astrólogo, suposto arquiteto de nosso tempo – o futuro mais que imperfeito -, quem parece ser nosso presidente. Talvez imperador. Um anti-tudo, inclusive Platão: o governo dos ignorantes, um convite à escuridão. O que era conhecimento virou crença. A única prova que se faz é de convicção.
Estourados meus 17 minutos, preciso fazer a matrícula. Agora tudo é pago. Assino o pacote básico e ganho uma Glock. Preferia AK-47, mas as armas russas estão proibidas – o governo defende uma violência sem ideologia. Suspeito mais uma vez que vim parar na Guerra Fria. Negros usam pó de arroz para poder entrar, talvez estejamos mais atrás no tempo. A justa medida das roupas feministas é a exposição que deve provocar cobiça, jamais liberdade.  Além dos absurdos, o pior é que o preço foi uma facada!

Pisco os olhos, um tanto atônito, talvez tenha sido apenas um pesadelo estranho. Acabo de acordar, meus batimentos dizem que estou vivo. Como é difícil acordar calado! Será que é tarde?
João Cadeado

Um comentário:

  1. JOÃAAAO, QUE TEXTO!
    Agora quero um livro baseado nisso aí, como faz?! Culpa sua, agora se vira!
    Achei a crônica MUITO interessante, de verdade! Intrigante, agarra nossa atenção do começo ao fim, e é cheia de boas referências! Parabéns!
    <3

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