Me sentei na cadeira da sala de espera da delegacia. Com as mãos entrelaçadas sobre o colo, encarei o espelho que ficava na parede de frente a mim. Os olhos roxos e inchados, o nariz de onde ainda escorria um filete de sangue. Tentei mexer o ombro; uma pontada de dor acompanhou o movimento, os dedos machucados após tentarem impedir a lâmina da faca de acertar o meu peito.
Como eu vim parar aqui? Pensei. Logo, comecei a me recordar do trajeto. Os primeiros encontros, os beijos divididos na praça atrás da escola. O pedido de namoro, rosas espalhadas pelo quarto. Sete anos até o pedido de noivado. Dois anos até o casamento. Uma festa deslumbrante, inesquecível, mas cara. Muito cara. Construir uma casa a partir do zero, ou alugar um apartamento.
Escolhido o apartamento, três anos até o nascimento do filho. A criança mais linda do mundo. Mas crianças sempre são acompanhadas de dívidas. Poupança. Boas escolas. Em algum momento a necessidade de procurar um bom emprego surgiu, ambos procuraram. Um conseguiu, o outro não. Foi aí que a bebida chegou. No começo o cheiro dela só se instalava pela casa nos finais de semana; depois dia sim, dia não. Até o momento em que praticamente um novo morador.
Foi então que a primeira discussão aconteceu, no começo só alguns gritos e xingamentos, orgulho ferido de um lado e a sensação de falta de reconhecimento do outro. Logo ela foi encerrada com o choro da criança. Logo vieram a segunda, a terceira, a sétima...quando as agressões começaram? Na nona! Isso, na nona. Um tapa certeiro no rosto, um silêncio sepulcral, ambos se encarando assustados. No dia seguinte veio o arrependimento, a promessa de que aquilo não iria se repetir. Se repetiu.
Repetiu-se por vários dias, meses, anos. O mesmo ciclo. Discussão; agressão, pedidos de desculpa, às vezes acompanhados de um presente, e a promessa de que não ia acontecer de novo. Os motivos para aquilo começaram a se tornar cada vez menores, ridículos. Uma roupa mal passada, um café sem açúcar. Socos, porradas, chutes e...de repente a porta da sala do delegado se abriu. Com ele, saia a minha esposa.
Os cabelos ruivos que fizeram com que eu me apaixonasse; as feições que deixavam minhas pernas bambas haviam sido danificadas. Seu nariz havia sido quebrado na trigésima briga, o lábio estava inchado e os olhos, com seu lindo tom de verde, se misturavam com o vermelho das horas de choro e o roxo da última briga. A última briga. Ela começou a passar por minha cabeça em um flash.
Não consigo lembrar o motivo da briga, o álcool faz essas coisas com a gente. Acho que ela havia chegado do trabalho, estava fazendo o jantar, mas eu queria me alimentar de uma forma diferente. Ela me recusou, reclamou do meu bafo. Lembro do sangue esquentando, da mão se levantando e aterrissando com tudo na sua nuca. Ela caiu. Antes que eu pudesse devolver seu choro e seus xingamentos com um chute, senti um peso avassalador caindo sobre as minhas costas. Cai, e ao me virar, vi meu filho segurando a cadeira. Acho que a bebida não me deixou perceber o quanto ele havia crescido.
Os braços fortes seguravam a cadeira, sua expressão era uma mistura de raiva, nojo e tristeza. Ele se preparava para bater a cadeira mais uma vez, mas eu consegui o derrubar e me lancei sobre ele. De súbito um grito se espalhou pela cozinha, nunca duvide da força de uma mãe ao defender o seu filho. Senti o chute do seu salto alto atingir meu rosto com tudo, ela se jogou sobre mim e começou a me socar, puxou uma faca da mesa e só não me acertou, porque a minha mão segurou a faca e a polícia chegou logo depois.
Depois de recordar a última noite, tentei me levantar e ir falar com ela, talvez se eu pedisse desculpas, se entrasse em alcoólicos anônimos, talvez assim ela pudesse me perdoar. Ela se virou, e abraçou meu filho. Ele me encarava, a vergonha, construída por anos, estampava o seu rosto. Os policiais me pegaram pelos braços e me algemaram. Dessa vez o perdão não iria me libertar.
Com amor, Eclipsa B
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