quinta-feira, 16 de maio de 2019

TE DOU MINHA PALAVRA

É engraçado dizer isso, porque certamente você não vai me entender da maneira que eu gostaria. Mas se a função maior da língua é traduzir coisas que pensamos ou, pior, que vemos, em não-coisas que são as palavras, seu alcance máximo é de comunicar aproximadamente o que se pretende. Não é possível transformar a realidade em letras. Ou seja, você não vai me entender plenamente porque não dá, simples assim. Entendeu?

Anos atrás, comecinho de namoro, queria brincar de adulto e fazer macarronada com uma atual ex-ex-ex, aproveitando que meus pais tinham saído – ok, eu queria mais que isso, mas é assunto pra outra hora. Ali ensaiávamos estabanadamente nos tornarmos João e Maria. Molecotes de bolsos semi-vazios, fomos ao mercado a fim de comprar os ingredientes. Chegando lá, a menina disse que os trocados não seriam suficientes para o banquete lúdico. Como eu não entendia absolutamente nada de preços, acatei o veredito. Afinal, na figura incômoda de João, me cabia bancar – exemplo cabal de que o machismo também vitima homens. A ela, Maria, restava preparar. Claramente, eu não sabia lê-la.

Já pela esquina da Rua São Clemente e ver o quanto nós tínhamos somados, percebi que seria absurdo aquilo não dar para tão pouca coisa: massa, tempero e molho. Foi então que ela disse: - Com isso, só isso, a gente faz macarrão. Pra ser macarronada, tem que ter presunto e queijo. Reação condizente com as espinhas no rosto e a visão de mundo não lá muito larga: ri da cara dela e, claro, avisei que pra ser macarronada não precisava nem de uma coisa, nem de outra. Ela, relutante, disse que eu estava confundindo as coisas, que se eu fosse na casa dela conversar com sua família, ia aprender com quantos presuntos e queijos se faz uma macarronada. Batata! – não o ingrediente, foi só uma interjeição. A mãe maluca, o pai ausente, a irmã de fralda, todos sabiam – e se perguntássemos aos porquinhos na varada sobre seus parentes, não haveria respostas diferentes: pra fazer macarronada, tem que ter presunto e queijo.

Mais tarde, percebemos que não nos entendíamos em aspectos muito mais relevantes e a relação não foi pra frente: era como se falássemos idiomas distintos. Maria não via no espelho o que eu via sem ele. Ser mulher, para ela, era ser menor, asfixiada, estrangulada, calada, opaca. Incompatível. Maria ganhou vida quando virou João – que na verdade era Miguel, antítese de si mesma. O que não era, nem nunca foi mera expressão, realidade que demorei para capturar.

Não há prisão maior do que a linguagem: ela dá todos os contornos do modo como expressamos aquilo que no fim de contas é inominável. Você não vê o mesmo vermelho que eu, da mesma forma que meu conjunto de desejos e identidades nunca é idêntico ao de outra pessoa. Ser a si não é ser batizado. A gente se apropria da linguagem que nos é oferecida, nem sempre da que nos cabe. Somos receitas únicas, mas confundimos palavra e coisa. Ora, as coisas são o que são, apenas sensíveis, não o que representamos delas. Por isso, Miguel, te dou mais que minha palavra, embora todo meu lamento só seja comunicável através dela: meus sentimentos. E se um dia quiser aparecer pra fazer macarronada aqui em casa, pode vir, mas ó, não precisa trazer presunto nem queijo.
João Cadeado

Um comentário:

  1. MÃE, APRENDI A FAZER MACARRONADA!

    Oi, João! Que textão, hein?! Sou sua fã, sempre amo o que você escreve!
    Achei ótima essa sua refelxão sobre a linguagem. (Será que teve algo a ver com a última aula da Danielle? 🤔)Também gostei bastante do "Batata!" ali no meio kkkk sacada de mestre

    Nenhuma crítica pra fazer :)
    Beijos <3

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