quinta-feira, 2 de maio de 2019

Estação carioca

O sol a pino do Rio de Janeiro refletia nos óculos escuros da mulher. O barulho do salto alto apressado chocando-se contra o asfalto misturava-se aos sons da Avenida Rio Branco. Era o típico dia de verão carioca cujo termômetro marcava trinta e cinco graus. A  sensação térmica era de abraçar o capeta visto que, no inferno, os brasileiros já pareciam estar. Mesmo assim, a mulher não abriu mão do seu blazer preto, saia apertada e as jóias para combinar. Foi pedida em casamento ontem.
  As portas do metrô da estação Uruguaiana se abriram e uma multidão entrou no transporte junto da mulher de óculos escuros. Último vagão. Aquela massa de gente se misturava e criava uma mistura homogeneamente heterogênea ali dentro. A mulher estava com a hora apertada para chegar no trabalho e ainda desceria na última estação. Tinha um projeto importante para apresentar, demorou dois meses para montá-lo. Contudo, essa era a última coisa que passava em sua cabeça, já que fora pedida em casamento ontem.
 Anunciaram a estação.
 Um volume considerável de gente deixou o vagão, que ficou vazio, exceto por umas cinco cabeças e a mulher de óculos escuros. Ela preferiu ficar em pé, mesmo depois que a maioria das cadeiras tinham esvaziado. Não era a única, o homem engravatado parecia estar concentrado demais em sua conversa no telefone para reparar qualquer coisa ao seu redor. Inclusive, na cara feia da senhora de meia idade que tentava se concentrar, sem sucesso, em suas palavras cruzadas. Ela devia ter feito como a cuidadora que trouxera seu fone de ouvido e fingia prestar atenção no celular quando, na verdade, trocava olhares com o estudante de engenharia sentado em sua frente. Já o menino com a blusa do botafogo observava tudo, os olhos cor de carvão atentos a todos os detalhes, pois ele não tinha nada melhor pra fazer.
 O metrô volta a andar. As luzes da estação vão sumindo na janela e o preto dos túneis vai tomando conta da vista.
Um baque.
Os corpos foram jogados pra frente, escravos da inércia. Ao mesmo tempo, o preto das janelas transbordou e tomou conta do vagão. Acabou a luz. Um tumulto de vozes preencheu o espaço.
Escuta-se um grito.
Acende-se a luz.
- Socorro! Fui roubada! Fui roubada! - gritou a mulher de óculos escuros.
Todas as cinco cabeças olharam atordoadas em sua direção.
- O que foi? - perguntou o homem engravatado levantando do chão. A tela do celular trincada. - Merda. - praguejou pegando o aparelho.
- Minha aliança! Sumiu! - disse a mulher de óculos escuros enquanto olhava para os dedos como se o anel fosse aparecer milagrosamente.
- Ah, que pena! Um símbolo da consolidação do amor diante os olhos de deus! - indagou a senhora de meia idade com as mãos no rosto.
-Pode ter caído no chão. - pronunciou o estudante de engenharia. Ao levantar para analisar o piso, lia-se os dizeres “eu amo engenharia” em sua blusa.
- Não! Encostaram em mim! Puxaram dos meus dedos, eu senti! - afirmou a mulher de óculos escuros, esbaforida.
- Você ta acusando alguém?- perguntou a cuidadora
- Não estou acusando ninguém! Estou apenas falando o que me aconteceu!
- Bom, já que as portas estão fechadas e não tem mais ninguém no vagão, só pode ter sido alguém daqui. - disse o estudante de engenharia.
- JESUS AMADO, TENHA PIEDADE DE NÓS! - pediu a senhora de meia idade que logo começou a rezar.
 O menino com a blusa do botafogo riu. Pela primeira vez, pareciam ter notado a sua presença. Os cinco olhares voltaram-se para ele.
- Tá rindo de que, moleque? - perguntou o homem engravatado assim que, finalmente, aceitou o destino do celular rachado e guardou-o no bolso.
- Nada. Só achei engraçado a dona rezando.
- Engraçado? E Deus é algo pra rir? - disse, ofendida, a senhora de meia idade.
- Não rio de Deus não, eu rio do anel.
- Do anel?
- Ô muleque, sua mãe não te ensinou que é feio rir dos outros?
- Desculpa eu. É que é só um pedacinho de metal, a dona  tem dinheiro pra comprá outro.
  Silêncio. Todos os cinco olharam-se entre si. Pareciam ler o pensamento um do outro. Foi a cuidadora que se pronunciou.
- E você não tem medo do ladrão?
- Esse daí não deve ter medo não.- disse a senhora de meia idade.
  O menino era o único sentado, exceto pela senhora de meia idade que reclamava de dores nas costas.
- Espera um pouco, você não tava sentado mais pra direita?- perguntou o estudante de engenharia.
  De fato, estava. O menino havia trocado de lugar, agora estava mais perto da porta.
- Por que você não olha nos olhos quando falam com você?
 Cabisbaixo, no rosto do menino que antes havia um sorriso, agora escorriam lágrimas. Lágrimas. Esse era o motivo que tinha feito a moça de óculos escuros se atrasar para o trabalho. Não queria se casar, não com ele. Entrou numa galeria qualquer no centro do Rio e se trancou na cabine pra chorar. Lavou as mãos e o rosto, não sem antes tirar a aliança e colocar no bolso para não estragar. Lembrou. Seu rosto enrubesceu.
  Aquela era a primeira vez que o menino com a blusa do botafogo andava de metrô. Ganhou uns trocados por um serviço que fez e permitiu se dar ao luxo de chegar mais cedo em casa.Só não sabia que o metrô era tão apertadinho quando passava embaixo da terra. No momento em que acabou a luz, achou que ficar perto da porta era melhor, já que tinha um pouco de claustrofobia. Mudou de lugar.
 O olhar vagava de pessoa a pessoa, sempre atento aos detalhes, mas nunca aos olhos. Porque a vida lhe ensinou assim. Negro, pobre, e da favela. Aprendeu a carregar os pesos que a sociedade reservou para ele desde seu nascimento.Mas ainda assim tinha medo do preconceito e do senso comum. Dessa espécie de indução cognitiva social que tem cor, classe e gênero.
 O anel cai no chão. O barulho da prata batendo no piso atrai a atenção de todos. A mulher de óculos escuros se abaixa e pega a aliança.
 O metrô volta a andar e todos retornam a seus assentos.
Toninho Rodrigues

3 comentários:

  1. Oi, Toninho.
    "Era o típico dia de verão carioca cujo termômetro marcava trinta e cinco graus. A sensação térmica era de abraçar o capeta visto que, no inferno, os brasileiros já pareciam estar." Nessa sequência eu observei duas coisas. Primeiro, 35° é até pouco considerando o verão carioca. Óbvio que não é um erro, mas eu, como carioca, pensei: 35° tá tranquilo.
    Segundo, você esqueceu de uma vírgula antes do "visto que".
    Abraços!

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    1. Ah, não considero isso do 35 graus como uma “falha” ou algo do tipo, porque ele disse depois sobre a sensação térmica aparentar ser mt maior, achei até bom, detalhou bem o dia.

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  2. Agora sobre o texto em si, não tenho nada para falar. Tratou de um assunto muito importante, até achei que o engenheiro era o culpado durante a historia kkk Bouuuua, Toninho!

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