quinta-feira, 16 de maio de 2019

Luta de dicionários

Lembro de quando era criança e dizia que um dia ia ler todas as palavras que estavam no dicionário. Meu sonho era saber cada uma que existia no mundo e cada um dos seus significados. Porém, isso parecia cada vez mais distante e não se realizou, já que um vocábulo poder ter infinitos sentidos. Manga pode ser uma fruta, mas pode ser uma parte da roupa. Vela pode ser de barco ou de cera. Banco pode ser um lugar para tirar dinheiro ou para sentar. Isso sem falar quando conseguem definir até situações, como “ficar de vela”.

Essa variedade de sentidos que uma palavra pode ter é fascinante (apesar de ter destruído meu sonho), porque um não exclui o outro. Você pode comer manga todo dia, usar hidratante de manga, beber suco de manga e ter uma mochila com desenhos de manga, mas se apontarem para a sua camisa e falarem que a manga está suja você vai entender do que se trata. Isso é óbvio, graças a algo simples chamado contexto. Então por que quando se diz “direitos humanos” a primeira coisa que vem à cabeça é “bandido” e não “leis que garantem a vida humana”? De novo, é por causa do contexto que, no nosso caso, é de uma sociedade que se apropria da coisa mais livre que consigo imaginar: a palavra.

Temos alguns exemplos de governos que usaram e usam essa estratégia. Transformam o sentido de expressões em um que beneficia a si mesmo a ponto de desqualificar o discurso do opositor. É difícil perceber como isso é feito porque é sutil e escancarado ao mesmo tempo. Basicamente, o governante precisa repetir o termo que quer alterar constantemente usando a entonação e no contexto que desejar e deixar que seus seguidores façam o resto sozinhos, afinal estão cegos demais para enxergar que eles são a massa de manobra.

Conversar com alguém que tenha uma posição política diferente é como pisar em ovos. Uma palavra “errada” e já começam as discussões e os xingamentos. O diálogo é a melhor saída para resolver situações de conflito, mas como ele pode ser feito se para cada grupo uma palavra significa algo que para o outro é o oposto? Ficamos presos dentro de uma luta de dicionários, sendo forçados a ouvir as coisas mais absurdas e sendo reprimidos e humilhados ao tentar consertar.

O mais triste é pensar que as crianças de hoje que tenham o meu sonho de conhecer todas as palavras talvez não tenham o mesmo sonho de conhecer todos os significados por não saberem que existem. A palavra pode ser uma arma – e disso, o governo entende bem.
Sharpay Evans

Um comentário:

  1. Oi, Sharpay!
    Seu texto ficou ótimo, achei o título bem criativo e condizente com o conteúdo.
    Gostei bastante da forma como você contextualizou ali em cima usando exemplos mais "banais" como manga e etc.
    Algumas frases da crônica me impactaram bastante, e amo quando isso acontece! Parabéns!
    Beijos <3

    ResponderExcluir