quinta-feira, 16 de maio de 2019

Ela ainda se orgulha

    Verena sempre gostou de suas origens. Filha de mãe alemã e pai árabe, a garota adorava ouvir aos detalhes do íncio do romance entre um simples funcionário de hotel e a bela hóspede germânica. As trocas de olhares nos muitos encontros ocasionais no hotel, a forma como seu pai usou a curiosidade sobre a Alemanha para se aproximar, a decisão do jovem em largar os estudos na Universidade de Damasco e se mudar para a Europa por amor...Todas as partes da história eram fascinantes aos olhos da menina. Aqueles acontecimentos eram também parte de sua prória história, afinal.
    Além do encanto pela relação dos pais, ela também amava responder as curiosas perguntas dos colegas de escola sobre como era ser filha de um estrangeiro. "Mas você fala duas línguas? Foi o seu pai quem te ensinou?" "Você já foi na Síria?" "Você é muçulmana?" "Mas você só fala ou também consegue ler e entender todos aquelas letras malucas? Me ensina?! Deve ser muito legal saber outra língua assim, sem nem ter que estudar!" Ensinar os colegas um pouco do que sabia sobre a cultura de seu pai era divertido, e se destacar nas aulas de geografia e história pelo conhecimento que tinha sobre o oriente médio também não era nada mal. A garota amava ser quem era e adorava estar no centro das atenções. Até que tudo mudou. 

   O primeiro sinal de que algo de errado estava acontecendo veio no final de 2015. Era só mais um dia  comum, no qual o pai de Verena a buscaria na escola e conversariam sobre qualquer assunto banal no caminho de casa. Ao invés de aparecer, o homem mandou mensagem para a filha, pedindo que voltasse sozinha. A explicação para tal viria apenas mais tarde: na madrugada anterior, o restaurante do sírio havia sido invadido e vandalizado. Cadeiras e mesas destruídas, aparelhos mais valiosos roubados, paredes pixadas com símbolos nazistas e palavras de ordem. Naquela época, a menina não ligou os fatos e simplesmente deduziu que o estabelecimento havia sido alvo de um crime qualquer. Infelizmente, não demoraria muito até que entedesse o que de fato estava acontecendo.
    No ano seguinte, 2016, a garota finalmente iniciou seus estudos no ensino médio. Escola nova, novos amigos...Como extrovertida que era, mal podia conter sua ansiedade e animação. Já tinha na ponta da língua tudo que diria para puxar assunto e como tentaria se aproximar dos colegas de classe. Foi aí que a surpresa veio. A curiosidade e interesse que surgiam quando falava sobre sua origem deram lugar a outras reações. Repugnância. Hostilidade. Receio. Era tudo diferente, tudo muito novo e tudo a confundia e assustava. A partir daí, as coisas só pioraram. Não adiantava mais dizer que a parte árabe de sua família não seguia o islamismo. Não adiantava dizer que o pai não era refugiado, que tinha vindo para o país bem antes da guerra na Síria começar, que o restaurante havia sido comprado com as economias trazidas da terra natal e que ele não havia roubado o emprego de ninguém. Parecia que todos estavam surdos para as palavras que a menina implorava que fossem ouvidas.

   Não tinha mais como fechar os olhos e fingir não enteder o que estava acontecendo. Verena entendia muito bem, mas isso não significava que doía menos. Ser "estrangeira" agora era o mesmo do que ser uma ameaça ao bem-estar do país, o mesmo que querer roubar o emprego e os direitos dos alemães. "Árabe" tinha se tornado sinônimo de terrorista, homem-bomba, extremista religioso. Algumas palavras não possuíam mais o sentido que aprendera quando criança - xenofobia e preconceito eram os únicos termos dos quais tinha certeza do signfiicado  -, e a Alemanha definitivamente não era mais o país com o qual a versão jovem de seu pai vivia sonhando. Seis anos depois de ser arrancada da possibilidade de ir até uma de suas pátrias por causa do início de uma guerra, se via socialmente expulsa da outra. Enquanto a Síria mantinha-na longe por conta do perigo, a Alemanha deixava claro que não era bem-vinda. A garota que sempre sorria pelo orgulho de ser de duas terras agora já não pertencia mais a lugar nenhum.

    Apesar de tudo, ela ainda gostava do que era. Síria e alemã, árabe e germânica. Embora a pós-verdade parecesse quase ser permitida e encorajada por lei, Verena prometeu a si mesma que não se deixaria levar pelo novo olhar do mundo sobre as coisas.
    Enquanto as pessoas a sua volta estivessem ressignificando as palavras, ela manteria na mente e no coração o verdadeiro sentido de ser quem era. 
Leena Charpentier

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