“Dinheiro ou cartão?”, perguntou o cobrador do minimizador de passos para a escravidão ou paraíso, dependendo do destino – vulgo trocador de ônibus. Há dúvidas irrelevantes que arrastamos pelo cotidiano, embora nesse dia em especial não houvesse questionamento: eram pratinhas que pouco valem, mas muito custam no fim do mês.
Cinco e nada da manhã. Como só os funcionários da Mauá chegavam antes de Mariazinha, dia após dia, o tédio da viagem era preenchido por palpites sobre a vida de estranhos. O velhinho que poderia sentar na frente e ficou lá pra trás, junto com a menina de saia: tarado; Uma mulher descabelada, com cheiro forte de água sanitária: empregada sofredora e esforçada ou vadia desleixada – se é que vocês entendem; O rapaz com a blusa do Che, óculos de armação grossa e barbão: algum militante partidário que queria mudar o mundo com palavras fora da realidade de Mariazinha, ainda que reivindicasse saber o que era melhor pra ela mesma – ou seja, chato e pretensioso!
Um, dois, três, dezesseis. Ninguém sentava ao seu lado. Era a mochila que ocupava espaço em demasia? A perna muito aberta, por estar morta de sono? Teria ela cara de santinha demais para algum homem vir sentar ali? Talvez, estivesse feia. Quiçá, com o cabelo fedendo – só viria a lavar dentro de dois dias. Pranchinha, sabe como é. Não, ela devia ser porque as pessoas gostam de ir na frente ou atrás e a parte média é o que sobra. Ah, mas olha lá, olha lá! A mão estava no outro banco, parecia que estava guardando lugar pra alguém. Devia ser isso. “É isso”, sussurrou pra si mesma. O fato é que ninguém senta ao lado de alguém no ônibus se há um par de bancos vazio – as pessoas querem espaço e distância. Somos educados para a solidão compartilhada. Sete bilhões de solitários.
Foi no ponto da Ilha de Mocanguê que ela despertou. Cabelo baixinho e moreno – mas com pelinhos loiros na raiz, deve ter sido loiro quando pequeno, uma fofura. Olhos verdes, talvez esverdeados, não deu pra perceber. Os pedaços do rosto meio assimétrios, aquela beleza imperfeita, própria de quem tem um quê imperceptível, porém avassalador. Calça jeans surrada e uma camisa social que apertava um pouco no peito – deve fazer exercícios. Sapato brilhando, deve ser caridoso e ter ajudado um engraxate. Realmente, trata-se de um bom rapaz. Ah, não, a barba muito bem feita atestava: milico e, muito provavelmente, eleitor do Bolsonaro. Mariazinha acabava de começar Jornalismo, já pensava em convidar pra um pic-nic na orla e à essa altura estava quase desistindo... quando, opa, um broche do Freixo na mochila quebrou a imagem: quem sabe, líder da insurreição! Dentre os apetrechos no braço, uma indicação de crença em Santo Expedito, o que não batia com ela, pois, apesar de evangélica, àquela altura ela queria era Santo Antônio.
Mas e aí? Devia lançar um “Lula Livre”, esperar alguma deixa? Ou parar de fazer doce? Ah, claro, doce: é só oferecer uma bala. Uma abordagem sutil, mas de claras intenções. Será mesmo? E se ele não entender ou, muito pior, achar que ela está insinuando que ele tem bafo? Ok, melhor não.
A ponte acaba. Reticências: os pontos passam e nada acontece. Até que suas pernas se tocam. Ela consegue sentir, por debaixo daquele jeans grosso, um carinho delicado – mostrando que, apesar da cara de homem, tem sensibilidade. Mas e aí, senhores? Não seria colaborar para assédios? E se ela quer, deveria arrastar a perna de volta? E se parecer vulgar? E se ele não entender? Ou, como não deve ser, se ele estiver encostando nela sem querer?
A Maria mulher tomou a frente da Maria menina. Respirou fundo, puxou assunto sobre a maior de todas as questões que uma pessoa pode ter na ponte: o que diabos é aquele vão que viu no post do Facebook? Ele explicou que era uma tal de junta de dilatação – que homem! Minutos depois, de sorriso e peito abertos, ela indagou se ele pretende se casar na igreja e quais seriam os nomes dos seus filhos. Ele gosta de ‘Ariel’, por causa do anjo – ela, por causa da pequena sereia. Porém, ela quer um casal, então precisa de um nome para o garoto – e ele para uma garota, pois acha que ‘Ariel’ é nome de menino. Nada importa diante daquele encanto recíproco.
Um esbarrão pede passagem e ela acorda. Ainda na dúvida entre sonho e realidade, vê sua despedida como em câmera lenta. Talvez, o amor da vida dela. Provavelmente, uma ilusão passageira. Piscou os olhos de novo e estava no terminal. Mais um namorado diminuto.
João Cadeado
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