quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Alívio

 Estava acompanhando o assunto da semana na fonte mais confiável da contemporaneidade: o Twitter. O caso da Mariana Ferrer preencheria, novamente, a minha timeline do dia. Inicialmente, tinha assistido o vídeo no Instagram. Nas outras vezes que aconteceu, a proporção foi menor e nada foi feito, pois o tribunal da internet, em muitas situações, não tem tanto poder de interferir na realidade como pensa, apesar da indignação ser inevitável. 

No momento em que quase desistia de ler os comentários, que pareciam infinitos, e me deixavam cada vez mais desacreditada na justiça quando se trata de minorias, leio um tweet que chama a minha atenção. Ele falava sobre o advogado do André Aranha ter votado no Bolsonaro, assim como todos os outros que o defendiam na rede social, atribuindo a responsabilidade toda nesse fato. A partir disso, comecei a refletir sobre os possíveis desdobramentos desse pensamento e o que ele poderia gerar. 

Logo percebi. Como eu não poderia ter notado antes? É claro que apenas homens declaradamente de direita (nesse caso, a extrema) seriam capazes de defender estupro. Soltei um suspiro de alívio com o celular na mão: graças a Deus, a maioria dos caras que eu convivo simpatizam com a esquerda e por isso não corro riscos. Nem de passar por assédio, e nem de duvidarem da minha palavra quando eu tento denunciar um. Até porque a conduta masculina, e o uso da sua posição de poder sobre o corpo de mulheres está, única e diretamente, ligada ao “posicionamento político” dele. Posso finalmente viver sem medo. 

Evidentemente, essa lógica só funciona num mundo onde estuprador tem (uma só) cara. Só um estereótipo, o de um homem “estranho” e desconhecido. Não que esses não existam, assim como muitas pessoas que encontram justificativas para defender esse crime (e cometê-lo) na ideologia de extrema direita. E sim, as ideologias dizem muito. Aqui, se me permitem, quero chamar uma breve atenção para o outro lado. Quando o abusador é aquele conhecido que todos adoram a amizade. Quando é um tio que é próximo da família inteira. Quando é um cara que se porta como alguém “desconstruído”. Casos em que a vítima é descredibilizada porque “ele nunca teria essa conduta”. 

Tratar a misoginia como um problema estrutural e geral também é defender as vítimas.


                                                                                                          Estela Lia


            


19 comentários:

  1. Parabéns, evoluiu muito desde a semana passada. Ainda assim, a frase final precisa de vírgula depois do "geral". No mais, parabéns pela crônica, eu particularmente não senti a ironia, deve ser por causa da complexidade do tema.

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    1. Obrigada, Cara de Pescoço! Sim, eu tentei ironizar ao longo do terceiro parágrafo mas tive certa dificuldade. Acho que fiquei com receio de ser mal interpretada e acabei pecando nessa questão da ironia.

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    2. A ironia é subjetiva, por isso disse "particularmente", eu posso não sentir mas você sim e outros também. O que importa é que é um bom texto, e você ter revisado dessa vez, parabéns por ter conseguido!

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  2. De início, eu pensei em mudar o tema e escrever novamente a crônica, mas lembrei da proposta do professor de ser “sem censura” e mantive essa, que foi a primeira ideia que tive. O ato falho acho que está claro na minha fala, passei por uma situação de denunciar assédio e ouvir as mais variadas justificativas baseadas na pessoa que fez isso. Talvez tenha nessas palavras até um rancor pelas pessoas que duvidaram. Inclusive, quando comentei a ideia pra uma amiga, ela logo percebeu que eu estava colocando minha experiência na crônica.

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  3. Olá, Estela Lia. Senti sim ironia na sua crõnica, parabéns. A única parte que pontuaria é "Aqui, se me permitem, quero chamar uma breve atenção para o outro lado. Quando o abusador é aquele conhecido que todos adoram a amizade. Quando é um tio que é próximo da família inteira. Quando é um cara que se porta como alguém “desconstruído”. Casos em que a vítima é descredibilizada porque “ele nunca teria essa conduta”. ", talvez o uso do ponto para separar as frases não tenha sido tão adequado, pelo menos, inicialmente. Acho que o uso de vírgulas seria mais fluido. Mas parabéns!

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  4. Achei muito importante a forma que você tratou esse tema, de verdade! Essa imagem de que abusador só tem "uma cara" é até perigosa porque na hora de punir algum abusador sempre surgem os "ele nunca faria isso". Muito relevante e ótimo texto!

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    1. Mto obrigada pelo comentário! Fico feliz que tenha conseguido passar a mensagem que eu queria.

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  5. Gostei muito do texto, me identifico muito com tudo o que você falou, porque é algo realmente bem real. Tantos homens se sentem livres para se apropriarem do corpo das mulheres, com a justificativa de que "são de esquerda". Também gostei muito da forma como você usou a ironia no terceiro parágrafo, mas acho que você poderia ter continuado com ela até o final do texto. Senti uma quebra quando, no último parágrafo, você foi sincera e explicou a ironia: muito bem escrito, mas desconexo e talvez desnecessário. No mais, ótima crônica, trouxe uma discussão indispensável.

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    1. Exatamente! Eu concordo contigo sobre o último parágrafo. Confesso que o meu receio de ser mal interpretada (não sei, como defensora de bolsominion) me impediu de seguir na ironia, então preferi correr o risco de explicar... obrigada pela crítica

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  6. Achei que a quebra no meio do texto dificultou um pouco a compreensão, entendi que a ideia do paragrafo final foi sair da ironia e falar sério, mas achei meio desconexo.

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    1. Sim, concordo contigo, foi uma falha do texto realmente. Obrigada pelo comentário

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  7. Texto muito bom, compreendi a ironia logo de cara. Não acho q o formato dificultou muito nao... gostei bastante, tema muito importante

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  8. Gostei do tema e da forma como tentou conduzir a ironia, apesar das dificuldades que apresentaram-se nítidas. No mais, omitir é tão grave quanto cometer, denunciem seus amiguinhos, não passem pano. Parabéns, Estela Lia!

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  9. Que texto foda!
    Necessário, a ironia é evidente para cada uma de nós que já vivenciou qualquer situação parecida apenas por ser mulher.
    A ideia de que abusador "só tem uma cara", que abusador é tudo de "direita", dificulta e muuuuuito o momento de denunciar os mais próximos e os pares.
    É foda. A gente tá na luta todos os dias mas o caminho ainda é muito longo.

    Cara, eu amei seu texto. Só atento para a falta da vírgula na última frase, mas nada que atrapalhou a compreensão do texto.
    Parabéns pela crônica.

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    1. Siim, dificulta muito pra conseguir ser ouvida qnd denunciamos.. muito obrigada pelo seu comentário. Eu estava receosa com essa abordagem que escolhi, mas agora fico mt feliz vendo que algumas pessoas conseguiram entender a mensagem.
      <3

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  10. Muito interessante, Estela! Vc abordou esse tema de maneira diferente com o 3° parágrafo recheado de ironia. Só o final do penúltimo parágrafo com "Aqui, se me permitem, quero chamar uma breve atenção para o outro lado..." que acho que poderia ser construído de outra maneira. Essa parte me tirou a fluidez de leitura que estava tendo ao longo da crônica. Mas no geral está ótimo!

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