Os olhos que viram o que não foi dito

 Caríssima Gato de Chita,

Como você já deve ter percebido, eu realmente não estava com covid. Peço que me perdoe por

inventar essa desculpa esfarrapada de última hora, mas juro que tenho meus motivos e, se me

permite, vou explicá-los ao longo desta carta.

Tal como foi observado em seu texto, sempre gostei muito de gente. Mas, conforme fui

crescendo, descobri que nem todo mundo gosta de gente como eu. Gosto de falar e de ser

ouvida, mas minha voz incomoda e, para não ser calada, nem sempre é possível me expor.

Talvez seja esse um dos motivos que justificam minha hesitação em lhe dar a entrevista que

você tanto queria, mas talvez vá além disso.

É importante dizer que admiro muito sua determinação em escrever sobre mim, mesmo sem

meu depoimento. Bem que desconfiei que alguém espiava meu quarto pela janela naquela tarde

em que estava assistindo minhas aulas pelo notebook (e nem ouso imaginar como você fez pra

descobrir as outras informações). Mas, diferente do que você descreveu, os post-its não são para

me lembrar das tarefas do dia. Neles eu escrevo tudo que preciso botar pra fora, mas não

consigo falar. Talvez pra mim seja difícil usar a voz quando as coisas precisam ser ditas, talvez

eu não goste tanto do que falo ou do que escrevo e talvez por isso eu tenha relutado em

emprestar a minha voz pra você.

Também devo confessar que de início sua ideia não me atraiu porque nunca acreditei muito em

perfis. Eles podem mostrar todos os detalhes de um dos seus lados, mas nunca será possível te

abordar a partir de todas as suas perspectivas. Você certamente ouviu vários rocks antigos e

talvez até uma bossa nova enquanto passava pela minha janela, mas não estava lá quando meus

raps tocaram ou quando dancei ao som do meu funk.

Porém, não estou aqui para criticar e sim para demonstrar o quanto seu texto me surpreendeu. O

perfil pode não ter captado todos os meus lados, mas encontrou uma versão de mim que nem eu

mesma conhecia. E sua visão do meu eu, não menos real que a minha própria, foi capaz de me

emocionar. A partir dela, descobri que sou forte e meiga, que sei valorizar quem amo e seduzir

as pessoas, mesmo quando duvido disso. Descobri detalhes que não imaginava que alguém

pudesse reparar.

Por tudo isso, só tenho a te agradecer. Você foi capaz de ouvir o que não foi dito e viu o que

nem todo mundo quer ver. Você notou as dores que andam comigo e não as jogou fora, como

sabe que eu jamais faria. Você me conheceu sem nunca encarar meu rosto ou sequer trocar uma

palavra comigo e eu prometo nunca mais desperdiçar a oportunidade de te conhecer.

Atenciosamente,

                                                                                                  Mulher do Fim do Mundo