Eu comi o meu cachorro. Inteirinho. Eu não sei dizer se eu estava com fome ou não. Eu só
comi e pronto. As pessoas que me conhecem devem até ter percebido, mas não falaram nada
sobre. Aceitei isso como complacência. Porém, eu não conseguia parar de pensar nele.
Ele era o melhor cachorro que eu já tinha visto. Como melhor não é um termo muito objetivo,
vou corrigir: ele era o cachorro mais humano que eu já tinha visto. Era gigante, a pelagem
brilhante, e os olhos castanhos que falavam em alto e bom som “estou vivo”. Era saudável,
alegre e encantava a todos que conhecia. Ele gostava de brincar, era educado, me dava
carinho, e eu o amava mais que tudo. Era o cachorro perfeito.
Já eu, era basicamente o contrário dele. Acho que por isso fui comendo aos poucos, parte por
parte. A vitalidade dele foi sumindo, o pelo foi caindo. Mas eu não ficava cheio. Pedaço por
pedaço, eu o comia na frente de todos, drenava sua luz na frente de todos. Ninguém ligava,
nem para mim, nem para ele.
Mesmo eu fazendo tudo isso com o coitado, ele ainda me amava incondicionalmente. Me
amava mesmo.
Finalmente, morreu. Já não tinha mais nada ali. Deixei a carcaça para os vermes. Fui ao
cemitério de cães e organizei com o coveiro. Ele era meio maluquinho, mas eu também.
Enterrou o cachorro, e aquele corpo não tinha mais nem um sinal de que antes tinha existido
um ser especial.
O coveiro perguntou se eu não ia chorar. Respondi que não. Assim que o coveiro pintou o
nome dele na placa, chorei. Eu não conseguia aceitar. A tinta do nome estava extremamente
fresca. Era uma ironia dolorosa.
No fundo eu sabia que ele não tinha morrido por minha culpa.
Mas minha mente falava que sim. Ela falava que eu tinha comido o cachorro tanto que ele
escolheu morrer. Agora, eu já pensava que o cachorro estava se vingando. Ele que estava me
comendo por dentro, me consumindo. Minha mente só retrucou: era eu que estava forçando o
cachorro a me comer, ele não tinha culpa.
Olhei para as letras do nome dele, pintadas frescamente. Chorei novamente. Não consegui
conter o choro. Eu o amava tanto. Sinto saudades de brincar, sinto saudades sentir seu pelo,
só sinto saudades.
Eu só queria que ele estivesse vivo.
E minha mente falou: só para você comer de novo.
Asa Monstro
asa monstro, que texto incrível!
ResponderExcluirAsa, você já sabe mas faço questão de repetir: Sou sua fã! Seus textos sempre me surpreendem. Parabéns mil vezes.
ResponderExcluirAsa mostro, amei sua escrita e acho que você está falando sobre aquela tradição de algumas tribos indígenas antigamente que comiam os guerreiros que eles julgavam fortes e saudáveis, para assim "pegar" suas virtudes. Parabéns pelo textooooo <3
ResponderExcluir