quinta-feira, 22 de julho de 2021

Por onde você for, eu estarei lá

Numa madrugada de uns 20 anos atrás, tive a sensação de acordar em casa, apesar de me lembrar bem que não foi ali que eu me deitei para dormir.

Olhei ao redor, estava tudo como de costume. 

A Vó na cadeira do papai que ficava entre a porta da cozinha e o corredor que levava ao banheiro, cortando, habitualmente, sua couve bem fininha entre o punho cerrado e o facão bem amolado. 

A Mãe assistindo a novela no sofá da parte da sala que era separada para dar a sensação de ser a de jantar.

A Irmã fazendo a unha dos pés na outra ponta do sofá.
O que tornou o cenário diferente, foi a presença da Tia que pouco vinha nos visitar. Estava ao lado da Vó, como fazia nas poucas datas comemorativas que vinha. 

Lembrei que quando me deitei não era Natal, tampouco dia das mães. Era um sábado quinzenal qualquer que eu ficava com o Pai. 

De 

repente,

Um estardalhaço começou. Uma sobreposição de vozes. 

Cenário em que a sala de estar e a sala de jantar se fragmentaram com uma rachadura no chão. 

De um lado a Vó e a Tia - do outro a Mãe e a irmã.

Tudo parecia remeter como se elas estivessem numa batalha do desenho Pokémon que eu adorava assistir na TV aberta.

E elas batalhavam.

Que

Estranho.

Não sabia que elas gostavam de Pokémon. 

Um espaço de tempo que eu não sei explicar muito bem o que aconteceu,

Mas vi a Vó pendurada por uma corda pelo pescoço na árvore de fruta do conde que tinha no quintal de casa. 

Enquanto a Tia dançava em volta de uma fogueira no chão do mesmo quintal. Procurei pela Mãe e pela Irmã. Não encontrei.  

Senti o desespero e ao mesmo tempo não pude fazer nada. Elas não me viam chorar e perguntar angustiantemente pelo que estava acontecendo. E eu também não conseguia tocar ou interferir no que fosse possível para mudar o que eu estava vendo.


Uma pressão tomou o meu coração.


Novamente eu acordei, porém desta vez exatamente onde eu me lembrava ter deitado para dormir. No chão da sala na casa do Pai. 

Eu estava sonhando.

Mas era um sonho tão real que eu sentia a sensação de que tinha perdido a minha avó. 

Me desesperei naquela sala escura e silenciosa. A quem eu poderia recorrer? Como salvar a Vó? Onde estava a Mãe? Porque tinham permitido que a Vó morresse? Tantas perguntas que ninguém poderia me responder.
Resolvi dormir outra vez.

Pedi a Deus que voltasse exatamente onde eu estava. Dessa vez eu ia salvar a Vó.

Ele me atendeu.

Novamente acordei em casa. Dessa vez me vi entrando pelo basculante da janela, como fiz algumas vezes quando já tomada pela desmemória da idade, a Vó perdeu a chave da porta.  

Corri para salvá-la. 

Não a encontrei. Desta vez, apenas a Mãe chorando sentada no sofá. Outra vez não pude interceder. Não pude tocar ou acariciá-la. 

Olhei pelos cantos da casa, não consegui ver mais nada. Era como se a casa não tivesse nada além do sofá em que estava a Mãe. tudo tomado pela escuridão periférica de quem perde uma parte da visão.

Acordei com o Pai me chamando. Mãe estava ali para me buscar antes do tempo combinado. 

Uma mistura de alívio e medo. 

Tudo o que eu vivi era verdade ou apenas um sonho?

Questionei a minha mãe, enquanto finalmente podia tocar, acariciar, falar e ser ouvida. Sentiu que eu estava precisando dela tanto quanto ela de mim, me disse. 

“Sonhei com você”, saiu da boca dela. 

Eu não estava sozinha. 

Soube que naquela madrugada, a Tia chegou com uma notícia triste. A Mãe e a Irmã imploraram para que ela não contasse a Vó, afinal, ela tinha uma idade que não permitia mais que suportasse algumas adversidades da vida. Embora tantos pedidos, ela fez ao contrário. 

Enquanto a Vó brigava com a Mãe e Irmã por ocultarem a verdade, passou mal e foi levada às pressas para um hospital.


--
Don't call me Madam. 

'                               Prazer, 
                                                                               Perua. 

6 comentários:

  1. Gente, eu estava avaliando as minhas crônicas e percebo que eu tenho dificuldade em escrever pouco, ser um pouco mais sucinta. Minhas crônicas são sempre grandes, isso porque eu não mando de fato tudo o que eu escrevi. Vejo que tem uns pseudônimos aqui que são bem sucintos.





    Estou querendo reinventar isso na próxima crônica.
    Vocês também têm a sensação vendo meus textos que ao bater o olho na estrutura eles parecem sempre os mesmos? Só vê a diferença pelo título, claro, ou quando lê de fato. Isso me incomoda. Me ajudem a evoluir como pseudônima. Obrigada.

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    1. Perua, eu adoro seus textos! Acho que não precisa se preocupar tanto, cada um tem seu jeitinho de escrever. Mas se quiser reduzir, acho que pode pensar em "selecionar" palavras que sintetizem mais a ideia da frase. Talvez, assim, você consiga cortar algumas partes. De qualquer forma, o texto ficou incrível como sempre!

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  2. Caramba, quantas vezes isso já aconteceu comigo! Nunca sei se estava apenas sonhando ou se era real... Às vezes até me confundo se minhas memórias de fato aconteceram, ou se foram apenas produzidas pelo meu inconsciente.

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  3. Perua, me vi um pouco na sua crônica, principalmente a parte da couve, também tenho essa memória de minha avó. Isso acontece muito comigo também, nunca sei se foi um sonho ou realidade, meu sonhos parecem tão reais...amei seu texto, esta incrível!

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  4. Perua amei seu texto, no começo não percebi que era um sonho de tão bem escrito, fui imaginando cenas durante ba leitura. Está incrível e não acho seus textos todos iguais. Parabénsss

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  5. Perua, seu texto me deixou muito angustiada, mas tenho certeza que a angústia que você sentiu nesses sonhos foi infinitamente maior. Acho que esse seu texto ficou longo por conta da quantidade de parágrafos que você fez, se as ideias estivessem condensadas em menos parágrafos, teríamos menos a sensação de que está grande.
    Deixo outro toque (que *não* vale para essa crônica): enxugar descrições e diminuir ou excluir detalhes que não são relevantes para a narrativa ajudam a deixar o texto menor.

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