quinta-feira, 1 de julho de 2021

Dedicatória

Dedicatória



Hoje, te olho, com seus 16 anos… como você conseguiu ficar mais linda quanto quando era aquela pequena menina que esfregava as minhas costas no banho, pois eu não tinha forças nos braços para alcançar até as direções mais alcançáveis.
Não falo beleza física, mas a sua beleza interior. 

Aquela que permitiu que você passasse um dia inteiro comigo no posto, após um mal estar durante uma de nossas idas à feira, apenas com um café com leite no estômago - que você nem gostava, mas que bebeu sem reclamar; ou como aquela que fazia você escutar as minhas histórias de fadas, princesas e dragões, repetidamente, todas as noites, antes de dormir. E que ainda dizia com seus pequeninos lábios “conta de novo, Vó?’’. Toda noite; E que também era capaz de provocar admiração em você pelas histórias da minha mocidade e de como me tornei bibliotecária após aquela vez que descobri que meu marido era bígamo e tinha ido embora, me deixando com sua mãe e sua tia ainda pequenas; me lembro como se fosse ontem, como ela permitiu que você sorrisse quando eu disse para que não se casasse, mas que trabalhasse, comprasse o seu carro e colocasse os homens dentro por uma noite, apenas, para usufruir do que eles tinham de único para oferecer. Uma beleza que merece herdar, quando chegar a minha hora, todos os meus livros da estante da sala. Não esqueço que você lia aqueles livros do Monteiro Lobato e perguntava “Vó, meu nariz é arrebitado?” enquanto ficava virando o rosto de vários ângulos. Me envaidece saber que você aprendeu a ler e a gostar com os meus romances antigos e as regras e técnicas para ser uma boa esposa e mãe. Às vezes eu só queria fazer o almoço em paz e você pedindo “Vó, conta aquela vez que a perereca grudou na perna da mãe?” e grudava nas minhas pernas feito aquela perereca. Como eu te achava linda, quando chegava da escola e dizia “Vó, vamos tomar chá?” e colocava as xícaras, pires, bule, milimetricamente organizadinhos na mesa com suas pequenas mãozinhas, enquanto eu esquentava a água e preparava as torradas. Minha pequena madame, tão chiquezinho como você perguntava, nas primeiras vezes, “Vó, assim que segura a xícara e o pires?’’ Gostaria que você conseguisse herdar também meu jogo de chá. Esses dias você me levou ao cinema... é indescritível o jeito como você encontrou um lugar confortável para mim e minha cadeira de rodas naquela sala com tantas cadeiras e como, apesar de ter dito o contrário, você ficou desconfortável para que eu ficasse confortável. São suas pequenas atitudes que me mostram que sou amada como nunca fui em todos esses anos que vivi. Será que o amor da minha vida, aqueles que todos dizem que um dia iremos encontrar, encontrei em você? eu tenho certeza que sim.
Essas e outras tantas lembranças…

Faço questão de te presentear com talvez um último livro e uma última dedicatória, pois sinto que a minha partida não tarda. Sinto também que este é um jeito de eternizar e fixar em palavras aquilo que eu gostaria que não partisse comigo: as nossas lembranças. Eu te amo tanto. E sei que você me ama também. E que você também sabe que eu te amo. Não porque costumamos dizer com palavras, como você bem sabe, mas porque dizemos através de todos esses momentos, narrados aqui ou não, que afirmam o quanto fomos presentes uma para a outra. Aliás, vejo a mocinha que você se tornou hoje e me orgulho por, à minha maneira, a melhor que eu pude oferecer, ter contribuído para isto. E você me permitiu com seu jeito receptivo que só a sua beleza interior foi capaz de te dar. Espero que em alguns anos após eu ter ido, que você possa ler esta dedicatória e sorrir como sempre sorriu lembrando de tudo que vivemos, porque eu… eu não vou me esquecer.
Desejo a você uma boa mocidade e que você se torne uma adulta tão bonita por dentro como você foi desde quando chorou a primeira vez com a entrada de ar nos teus pulmões. Eu estarei o tempo todo ao seu lado. Eu serei as nossas lembranças.
Aproveite a leitura. 


31/08/2000


N. M.


Fechei o livro e me peguei sorrindo como ela previu. 


Eu estava de mudança e encontrei aquela bíblia em meio a minha amontoada estante de livros. Havia conseguido uma promoção e me tornado redatora-chefe na empresa que comecei como estagiária e estava de mudança para outro estado, do jeito que tantas vezes juntas planejamos. Gostaria do teu abraço carnal, mas sinto que realmente está comigo em forma de lembranças e também na concretização dos nossos sonhos.


Bom te reencontrar, Vó.


Don’t call me Madam.


Prazer,


Perua. 

Um comentário:

  1. Perua, eu nem sei o que dizer da sua carta. Ler uma dedicatória de alguém que você ama e que já não está mais aqui deve ser ao mesmo tempo reconfortante e triste. Nesse caso, acho que mais reconfortante por saber que conseguiu tudo que almejava e sonhava acordada com a avó. Parabéns pela carta

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