quinta-feira, 1 de julho de 2021

Eu me vejo nos seus braços

De início eu não pensei em escrever para você. Na verdade, pensei em escrever para

alguém que eu não conheço. Um amor que ainda vou descobrir no meio de uma viagem sem

roteiro para Belém, quem sabe? Pensei até em escrever pra avó que nunca conheci, mas que

tenho aquela última lembrança dela — a roupinha branca feita de crochê, cada ponto

costurado de carinho. Mas no fim, contrariando a ordem natural dos seres, escolhi você por

ser mais difícil escrever para alguém que conhecemos do que para desconhecidos ou amores

imaginários. As palavras transbordam além do que deveriam e é mais fácil falar algo de

errado também.


E então eu me vejo nos seus braços, como naquela fotografia de dois mil e dois, no

mesmo sofá de sempre — aquele que ninguém quer se desfazer por fazer mais parte da casa

do que nós mesmos. Daqui consigo até sentir o tom da sua voz pronunciando o meu nome, o

seu rosto próximo ao meu corpo minúsculo, o hálito morno que me envolve como o mar nos

dias quentes de janeiro. Sabia que foi nesse último verão que fui à praia pela primeira vez

desde os sete anos? Queria poder ter voltado lá todos os outros dias e ter te levado comigo, a

água era um aconchego sem fim.


Agora é inverno e eu passo os dias te implorando pelo edredom novo, mas na minha

memória inventada é ainda fim de primavera, quase verão. Eu serei sua primeira e única e, na

ordem biológica das coisas, você será o único premiado. O único de três irmãos com uma

menina e eu serei a única permitida a usar rosa entre seis netos. O seu nome foi escolhido por

causa de um jogador de futebol de um time que seu pai nunca mais assistiu jogar, mas o meu

nome será em homenagem ao seu. Desde o ventre será meu dever carregar o seu fardo e o seu

império.


Nós carregamos a mesma décima terceira letra do alfabeto, o mesmo sangue, o mesmo

nariz, a mesma frieza, a mesma tendência a piadas ruins, o mesmo amor por desenhos antigos,

a mesma playlist de banho e nenhuma dessas palavras nunca vai chegar até você. Não por

causa da vergonha em te mostrar essa carta, mas porque esse é um texto sem remetente no

tempo. O endereço é o mesmo dessa casa, só que sem a grama e sem o pé de maracujá — tem

um limoeiro no lugar dele que, meio contra as regras da vida, floresce quase o ano inteiro —

mas a data é dezembro de dois mil e dois: você tem vinte seis anos, quase vinte e sete, e

segura nos braços um universo sem voz.


Você não sabe dizer feliz aniversário ou distribuir abraços, mas eu culpo meus avós,

seus pais, por isso. E é engraçado também porque agora, nesse exato segundo que te escrevo,


sinto que estou mais perto de você naquele momento do que nunca e, mesmo que essas

palavras nunca cheguem até você, sinto que deveria te agradecer por todos os gibis, pela

coletânea de fábulas da Disney, pelas histórias do trabalho recheadas de música antiga, por

esperar comigo pelos próximos quarenta anos até o cometa halley passar novamente, por

aquela edição de coleção de jornal de “A volta ao mundo em 80 dias”, do Verne, e pela

página d’O Globo sobre a lua de sangue de dois mil e dezoito.


E obrigada por outras mil coisas e pela história de hoje de manhã sobre a senhora que

pedia para você cantar as músicas que ela escutava quando jovem. Agora você já se tornou o

meu pai mais um dia e já saiu pra trabalhar, e não se preocupa, eu nunca vou deixar de te

desejar um bom dia.


Todos amam tomates

13 comentários:

  1. Que texto mais lindo, Todos! Parabéns.

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  2. Todos, eu com certeza sou seu fã número 1. Parabéns pelo texto.

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    1. assim eu fico toda boba, não creio que eu tenho um fã! e muito obrigada também ❤

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  3. muito lindo, Todos! amei a sensibilidade do texto

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  4. Que texto maravilhoso, Todos amam tomates. Extremamente bem escrito!

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  5. Simplesmente fantástico! Pude ler cada linha e sentir na pele a essência desse texto. Incrível. Parabéns.

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    1. esse comentário me deixou extremamente feliz, de verdade. claro que os outros também, todo comentário me deixa contente pra ser sincera, mas obrigada por ter dito que sentiu na pele o texto, parece que eu fiz um ótimo trabalho escrevendo ele ❤

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  6. Que texto lindooooo, que escrita linda. Parabéns, dá para sentir o seu sentimento, a cada linha parecia que estava lendo uma bela melodia. Parabéns <3

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    1. você não sabe o quanto as suas palavras me deixaram feliz, eu poderia te dizer obrigada eternamente ❤

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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