De início eu não pensei em escrever para você. Na verdade, pensei em escrever para
alguém que eu não conheço. Um amor que ainda vou descobrir no meio de uma viagem sem
roteiro para Belém, quem sabe? Pensei até em escrever pra avó que nunca conheci, mas que
tenho aquela última lembrança dela — a roupinha branca feita de crochê, cada ponto
costurado de carinho. Mas no fim, contrariando a ordem natural dos seres, escolhi você por
ser mais difícil escrever para alguém que conhecemos do que para desconhecidos ou amores
imaginários. As palavras transbordam além do que deveriam e é mais fácil falar algo de
errado também.
E então eu me vejo nos seus braços, como naquela fotografia de dois mil e dois, no
mesmo sofá de sempre — aquele que ninguém quer se desfazer por fazer mais parte da casa
do que nós mesmos. Daqui consigo até sentir o tom da sua voz pronunciando o meu nome, o
seu rosto próximo ao meu corpo minúsculo, o hálito morno que me envolve como o mar nos
dias quentes de janeiro. Sabia que foi nesse último verão que fui à praia pela primeira vez
desde os sete anos? Queria poder ter voltado lá todos os outros dias e ter te levado comigo, a
água era um aconchego sem fim.
Agora é inverno e eu passo os dias te implorando pelo edredom novo, mas na minha
memória inventada é ainda fim de primavera, quase verão. Eu serei sua primeira e única e, na
ordem biológica das coisas, você será o único premiado. O único de três irmãos com uma
menina e eu serei a única permitida a usar rosa entre seis netos. O seu nome foi escolhido por
causa de um jogador de futebol de um time que seu pai nunca mais assistiu jogar, mas o meu
nome será em homenagem ao seu. Desde o ventre será meu dever carregar o seu fardo e o seu
império.
Nós carregamos a mesma décima terceira letra do alfabeto, o mesmo sangue, o mesmo
nariz, a mesma frieza, a mesma tendência a piadas ruins, o mesmo amor por desenhos antigos,
a mesma playlist de banho e nenhuma dessas palavras nunca vai chegar até você. Não por
causa da vergonha em te mostrar essa carta, mas porque esse é um texto sem remetente no
tempo. O endereço é o mesmo dessa casa, só que sem a grama e sem o pé de maracujá — tem
um limoeiro no lugar dele que, meio contra as regras da vida, floresce quase o ano inteiro —
mas a data é dezembro de dois mil e dois: você tem vinte seis anos, quase vinte e sete, e
segura nos braços um universo sem voz.
Você não sabe dizer feliz aniversário ou distribuir abraços, mas eu culpo meus avós,
seus pais, por isso. E é engraçado também porque agora, nesse exato segundo que te escrevo,
sinto que estou mais perto de você naquele momento do que nunca e, mesmo que essas
palavras nunca cheguem até você, sinto que deveria te agradecer por todos os gibis, pela
coletânea de fábulas da Disney, pelas histórias do trabalho recheadas de música antiga, por
esperar comigo pelos próximos quarenta anos até o cometa halley passar novamente, por
aquela edição de coleção de jornal de “A volta ao mundo em 80 dias”, do Verne, e pela
página d’O Globo sobre a lua de sangue de dois mil e dezoito.
E obrigada por outras mil coisas e pela história de hoje de manhã sobre a senhora que
pedia para você cantar as músicas que ela escutava quando jovem. Agora você já se tornou o
meu pai mais um dia e já saiu pra trabalhar, e não se preocupa, eu nunca vou deixar de te
desejar um bom dia.
Todos amam tomates
Que texto mais lindo, Todos! Parabéns.
ResponderExcluirmuito obrigada ❤
ExcluirTodos, eu com certeza sou seu fã número 1. Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirassim eu fico toda boba, não creio que eu tenho um fã! e muito obrigada também ❤
Excluirmuito lindo, Todos! amei a sensibilidade do texto
ResponderExcluirque bom que você se sentiu tocada por ele, fico feliz ❤
ExcluirQue texto maravilhoso, Todos amam tomates. Extremamente bem escrito!
ResponderExcluirmuito obrigada! ❤
ExcluirSimplesmente fantástico! Pude ler cada linha e sentir na pele a essência desse texto. Incrível. Parabéns.
ResponderExcluiresse comentário me deixou extremamente feliz, de verdade. claro que os outros também, todo comentário me deixa contente pra ser sincera, mas obrigada por ter dito que sentiu na pele o texto, parece que eu fiz um ótimo trabalho escrevendo ele ❤
ExcluirQue texto lindooooo, que escrita linda. Parabéns, dá para sentir o seu sentimento, a cada linha parecia que estava lendo uma bela melodia. Parabéns <3
ResponderExcluirvocê não sabe o quanto as suas palavras me deixaram feliz, eu poderia te dizer obrigada eternamente ❤
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